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Mostrando postagens de março, 2009

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob

Todo mar é mar nunca antes navegado.

Me recuso terminantemente a ver o mundo como os outros o vêem. Mas, na verdade, não sou eu quem se recusa. Eu não seria tão tola. Há algo em mim que não admite que o meu mundo seja o mundo de um outro. Há algo em mim que repudia a naturalidade com que as coisas são incorporadas, há algo em mim que rejeita o óbvio. Esse, é o daimon da perplexidade. Cada som, cada forma, cada cheiro, cada toque são novos a cada momento. Cada dor, cada frio, cada impressão, acontece apenas desta única vez, nem antes, nem depois, mas agora, no momento em que acontece, e eu os vivo, e são novos, novidades que me deixam perplexa. Todo mar é mar nunca antes navegado. Tudo é novo, e, assim o sendo, rejeito fechá-lo na explicação daquilo que foi antes, daquilo que foi outro. O que eu vivo, deve ser conhecido a partir da sua verdade única, deve ser explorado a partir do zero, deve ser escrutinado, destrinchado e nomeado a partir de si mesmo. Você. Você é uma grande novidade para mim. A cada dia em que te encontr

Síntese aproximativa da minha realidade

"Não saberemos jamais se o outro, com o qual não podemos, apesar de tudo, confundir-nos, opera, a partir dos elementos de sua existência social, uma síntese que coincide exatamente com a que elaboramos. Mas não é necessário ir tão longe, é preciso somente - e para tanto, o sentimento interno basta - que a síntese, mesmo aproximativa, decorra da experiência humana." Lévi-Strauss, C. Antropologia Estrutural Dois. Tempo Brasileiro: RJ, 1993. Lévi-Strauss falava aí de uma síntese entre a dimensão objetiva da observação empírica e a dimensão subjetiva da vivência do observador. Sua aposta - fundamentada por ele em Mauss - é que, uma vez que somos homens observando a vivência de homens, nossa humanidade basta para confiar na aproximação da análise do etnólogo com a idéia que o próprio nativo faz de sua realidade, criando uma verdade a partir da interseção de duas subjetividades. O modo como coloquei aqui pode fazer parecer simplória esta afirmação, mas é que me furto de discorrer l

Sobre a morte.vida.morte.vida.morte.vida.morte.

"Vivo de mim mesmo , de minha própria crença , apesar da afirmação de que vivo não ser , talvez , senão um mero preconceito. Basta que eu fale com um homem 'cultivado' qualquer , que tenha vindo veranear na Alta Engandina , para convencer-me de que NÃO vivo. Assim , pois há um dever imperioso contra o qual se revolta até no íntimo o hábito , e , mais ainda , o orgulho dos meus instintos. Consiste este dever em proclamar: - Ouvi-me! EU SOU ALGUÉM E , SOBRETUDO , NÃO ME CONFUNDAIS COM QUALQUER OUTRO!" Friederich Nietzsche. Quantas vezes fala-se em morte na vida? Não me refiro a falar sobre os nove tiros que fulano levou à queima-roupa quando chegava na favela do trabalho, nem das pessoas arrastadas, defenestradas, incendiadas, nem demais atrocidades do Jornal Nacional. Me refiro à morte. Falar sobre morte; vida-morte. Como diz a música "the moment you're born you start dieing, so you might as weel have a good time". Morte não é o oposto de vida. Não são

Filosofia dos sentidos

"Há metafísica bastante em não se pensar em nada" Filosofia é a teorização abstrata da prática concreta. O pensar nos une e nos separa. O que é o ato de pensar para a natureza humana? E o que é o não pensar? É possível o não pensar? Pensar cartesiano x pensar. Sentir e pensar. Categorias kantianas. Pensamento. Pensar é diferente de sentir? É possível sentir com o pensamento? Qual é a diferença entre uma reação com pensamento para uma reação sem pensamento? Ou melhor, "vou dar uma porrada nesse fdp!!!" não é um pensamento? Confunde-se talvez pensamento simples com pensamento crítico. Pensar é um atributo primário da mente humana? cogito ergo sum.

Arte e confronto com o inconsciente

Ao assistir a uma série de apresentações de dança contemporânea dia desses, algo me chamou a atenção em particular. Peculiaridades nas coreografias denunciavam uma certa identidade entre os movimentos, que pareciam ser os hits da contemporâneidade. Claro que, culturalmente isso pode ser visto sob o prisma dos conceitos antropólógicos de contaminação e difusão, mas eu também gosto muito de pensar na influência do zeitgeist - como vocês bem devem ter percebido, pois já devo ter usado este termo aqui pelo menos umas três vezes. Somo filhos do nosso tempo e o idioma simbólico que utilizamos para traduzir as marés que nos vêm (antes de 2012, mantenho o acento, que adoro) do inconsciente é parcialmente culturalmente definido. De qualquer forma, uma das apresentações em específico me fez chegar à seguinte construção: diálogo com o insconsciente sem mediação simbólica é esquizofrenia. Parece que falei o óbvio, o que não deixa de ser. Mas é um óbvio necessário, visto que não parecia tão óbvio p

Radiohead - Creep

Uma poesia que nos dá uma ótima dimensão do discurso da ansiedade sobre identidade e estrangeirismo. Fala sobre como pertença, estranhamento e identidade estão inscritos nas relações, que é onde nos constituímos humanos. When you were here before, Quando você esteve aqui antes Couldn't look you in the eye Não pude te olhar nos olhos You're just like an angel, Você é como um anjo, Your skin makes me cry Sua pele me faz chorar You float like a feather Você flutua como uma penugem In a beautiful world Num mundo belo I wish I was special Eu queria ser especial You're so very special Você é tão especial But I'm a creep, Mas eu sou uma aberração I'm a weirdo Sou um esquisito What the hell am I doin' here? O que diabos estou fazendo aqui? I don't belong here Não pertenço a este lugar I don't care if it hurts, Não me importa se dói, I wanna have control Quero ter controle I want a perfect body Quero um corpo perfeito I want a perfect soul Quero uma alma perfeita

Novo conceito: sociedade da ansiedade.

Fernando Pessoa era um estrangeirista por excelência. Tão estranhava-se nele mesmo, que foi necessário que criasse outros eus para dar conta do seu estranhamento no mundo. E foi na pele de Alberto Caeiro que escreveu este fantástico estranhamento que lemos um post atrás. Abram bem os olhos e percebam a nitidez do estrangeirismo em cada verso, em cada estrofe: "Meu olhar é nítido como um girassol (...) E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo ..." O mundo é uma novidade a todo tempo para o estrangeirista. Há um misto de perda de referências - porque tudo é novo todo o tempo - com um sentimento profundo de pertença que, como fica claro neste Pessoa, chega até nós através dos sentidos: não se pensa no mundo; sabe-se-o. É muito semelhante ao que encontramos em L

Fernando Pessoa

Alguém que carrega o título de "pessoa" já no próprio nome, nunca poderia furtar-se a viver a humanidade de se ser humano. Aí está um Pessoa para ser comentado em breve: O Guardador de Rebanhos - (1911-1912) II O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... Creio no Mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. Mas porque a amo, e amo-a por

Nota mental: Pseudocompartilhar a solidão.

Todos os suicídios da história da humanidade, asseguro-vos-lho, foram cometidos por solidão. A incomensurável solidão de se suportar a realidade. Existem várias maneiras de se estar sozinho, mas, ao que parece, o estar sozinho com alguém por perto é infinitamente melhor para qualquer ser humano. Porque a solidão da realidade é inevitável. Ninguém passará pela sua vida por você. Ninguém sentirá o pisão no seu pé, a agulhada no seu braço. Sentir a realidade é um ato exclusivamente egoísta. Mas, novamente, ao que parece, quando há alguém com quem pseudo-compartilhar (isso é com ou sem hífen agora???) viver fica razoavelmente mais fácil. Este é o fundamento, incluisve, destas mequetrefas cibernéticas que espalham-se como filhos de rato pela internet: blogs, fotologs, twitters, orkuts, hi5's e adjascências. Talvez até num desespero consumista da sociedade de espetáculo: quanto mais gente souber da minha vida, melhor! Mas o fato é que, em maior ou menor grau a necessidade de compartilhar

Filosofar é estrangeiro

E será isso então o filosofar? Criar para si mesmo uma filosofia própria que o retire da similitude, que lhe forneça sua própria cosmovisão, e que diga: "eis o mundo, é assim que se me apresenta, e é a mim, sozinho, que comunica esta realidade peculiar, que não é de mais ninguém, senão minha!" E se ninguém mais puder compartilhar do que eu sinto? E se for eternamente impossível que alguém compreenda o que se passa comigo? E se, quanto mais infurnada na minha realidade pessoal, mais distanciada de vivenciar algo coletivamente? Sozinha, para todo o sempre? Esse é o destino do meu estranhamento? O preço do filosofar é a solidão, então. O retraimento social. Mais: a rejeição! Porque não é só você que se sente insuportavelmente diferente dos outros, mas os outros, estes alheios tão estranhamente iguais entre si, não suportarão existir ao seu lado, tamanha é a distância daquilo que você diz para aquilo que te escutam dizer! Na filosofia deste lado da laranja estamos fartos de belos