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É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado.

Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso.

Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala.

Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real.

Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá.

Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sobre o fundo de alumínio da panela fumegante, e aos poucos, um a um, transformam-se alquimicamente, estouro após estouro, cedendo à transformação do fogo.

Seus pés estão descalços. Tudo é novo, tudo é interessante, tudo merece sua atenção como quem acaba de acordar de um longo coma. Como quem acaba de acordar de um longo coma, ela quer ouvir intensamente os barulhos, entender o que acontece dentro daquela redoma de alumínio, que, antes contendo pequenos grãos duros e amarelos, fecha-se, e ao abrir-se a tampa oferece macios flocos brancos ao olfato.

Seus pés estão descalços e o toque da sua pele branca e fina com o chão é tão novo e inusitado como todo o resto. Ela anda pela casa escura, segurando uma bacia cheia de flocos brancos e cheirosos, e as penumbras criam novidades a todo instante.

O filme está pausado e ela poderia estar nua, pois não há ali testemunha de que ela sente a sola dos seus pés tocando o chão nem que olha ao redor da sala vermelha como quem quisesse ver. Mas estar nua significaria tantas outras impressões vindo ao encontro de seu corpo, tantos toques, cheiros, sons, sabores, que seriam sentidos por cada célula deste longo e macio lençol alvo que a cobre. Que talvez não fosse possível retornar; que talvez a sequestrassem num carrossel de sensações que fariam dela terreno seu por direito e de fato, e ela teria se perdido ali.

Seus pés estão descalços e ela não está nua, pois aprendeu que é preciso se resguardar, não entregar seu corpo inteiro ao maravilhamento, pois isto a afastaria por definitivo da realidade dos homens.

Fim do primeiro ato.

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