Pular para o conteúdo principal

Arte e confronto com o inconsciente

Ao assistir a uma série de apresentações de dança contemporânea dia desses, algo me chamou a atenção em particular. Peculiaridades nas coreografias denunciavam uma certa identidade entre os movimentos, que pareciam ser os hits da contemporâneidade. Claro que, culturalmente isso pode ser visto sob o prisma dos conceitos antropólógicos de contaminação e difusão, mas eu também gosto muito de pensar na influência do zeitgeist - como vocês bem devem ter percebido, pois já devo ter usado este termo aqui pelo menos umas três vezes. Somo filhos do nosso tempo e o idioma simbólico que utilizamos para traduzir as marés que nos vêm (antes de 2012, mantenho o acento, que adoro) do inconsciente é parcialmente culturalmente definido.

De qualquer forma, uma das apresentações em específico me fez chegar à seguinte construção: diálogo com o insconsciente sem mediação simbólica é esquizofrenia. Parece que falei o óbvio, o que não deixa de ser. Mas é um óbvio necessário, visto que não parecia tão óbvio para o coreógrafo/bailairino/performer/multi-qualquer-coisa que apresentava sua dança não dançada. Cheguei a isso observando a imensa semelhança da coreografia (?!!) e das performances nas vídeo-instalações - uma moda que deu certo - com trejeitos e atitudes das pessoas com quem trabalhei quando no hospital psiquiátrico. E, neste caso, me refiro às que se tratavam lá, e eventualmente um ou outro que se dizia "tratador". Gritos aleatórios de frases sem sentido. Ecolalias. Inversão do conceito de tempo. Espasmos e estereotipias corporais. Logorréia. Movimentos repetitivos. Qualquer louco que transeuntasse por ali consideraria-o um dos seus. Além disso, todo o projeto esquizofrenizava-se, destituído de continuidade, fosse linear, fosse circular, fosse ondular, fosse a continuidade que fosse, inexistente. Uma apresentação quebrada, fragmentada como a alma de um psicótico.

Começando agora por um outro lado, para encontrar minha idéia ali no meio onde parei.

A arte pode ser compreendida como um dos muitos possíveis resultados de um encontro com as marés do inconsciente. Ao contrário do que meu avô Sigmund cria, não se trata - é agora que eu apanho - de uma energia sexual reprimida que foi canalizada, redimensionada e redistribuída, ou seja, sublimada, tranformando-se em La Giocondas e em Nonas sinfonias. As imagens pertencem ao inconsciente coletivo, que tem muito mais com o que se preocupar do que apenas sexo, por melhor que seja o sexo. Ele tem a história da humanidade toda pra dar conta, e, quiçá outras histórias, de outras eras, raças, espécies, dimensões, quiçá. Não vou dar aula sobre inconsciente coletivo aqui. Não vou dar aula aqui. Mas de qualquer forma, é preciso clarificar que os influxos inconscientes não se tratam de taras, perversões, bizonhices e afins, que, uma vez reprimidos, insistem em nos assombrar. Não. Isso é apenas um infinitésimo de tudo o que é possível, pois o inconsciente é vida. Com tudo o que deve ter; de bom e de ruim; de grande e de pequeno; de claro e de escuro. Totalidade do humano. E isso cria, é criador, é criativo, é deus.

É assim a criatividade humana, da qual uma das expressões é a arte. Pero esto sólo es possible porque há a mediação do simbólico. Segundo a wikipédia, "O termo símbolo, com origem no grego σύμβολον (sýmbolon), designa um elemento representativo que está (realidade visível) em lugar de algo (realidade invisível)". O invisível, ou melhor seria, o indizível, é o conteúdo bruto do inconsciente. Para trazê-lo à tona, é preciso representá-lo. É como o presidente da sua empresa, que nunca dá as caras; é o inacessível. Sempre manda um representante falar por ele em seu lugar. É como a hidrelétrica, que torna possível que a água chegue à sua casa na forma de energia elétrica. Na psicose, o que acontece é que, ao acendermos o interruptor, a sala se inunda de água bruta, sem mediação simbólica.
Ok. Pegamos então a infinitude de conteúdos psíquicos, fazemos de alguma forma contato com eles, o símbolo faz a mediação tornando-os legíveis para o ego consciente e bang!, uma obra de arte! (Ou outra coisa, mas o assunto aqui é arte). Mas o que acontece se o espírito do nosso tempo, manifesto em modismos e alguns críticos de arte, resolver que é bom parecer que não há mediação? Resolver que é bom apenas acumular as idéias que surgem, sem organizá-las, sem forma, só conteúdo, vazão e conteúdo? Acontece isso a que assisti por esses dias.
Posso estar enganada. Pode ser que não seja o zeitgeist, e sim a obra solitária de indivíduos solitários que no seu próprio centro, resolveram fazer arte desta forma. Pode até ser que os críticos compartilhem da minha opinião.
Não importa. O que importa é que isso tudo não tem muito a ver com o tema do blog, que é estrangeirismo. Ou tem?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob

Estrangeirismo

Estrangeirismo. Extranjero. Étranger. Étrange. Strange. Stranger. Estranho. Platão, pai da filosofia como nós a conhecemos desta metade da laranja, vê no estranhamento a origem da filosofia. O Homem começa a filosofar porque sente este estranho estranhamento do mundo. Eros é quem filosofa, esse daimon do intermédio que está entre a sabedoria e a falta de recursos. Eros é impulsionamento, e se não lhe houvesse a falta, não lhe haveria o movimento. Por outro lado, temos a já enxovalhada frase que afirma que "o Homem é um ser gregário". Vivemos no outro. Nos constituímos no jogo de identificação e diferenciação com o outro. No olhar do outro. No toque. É preciso estranhar. Mas é preciso pertencer também. A solidão é um tema arquetípico dos mais densos, e pertence ao mundo do estranhamento, da não pertença, do estrangeirismo em todo lugar. Quantas pessoas devem sentir-se assim em todo mundo, estrangeiras em qualquer lugar? "Eu não sou daqui, marinheiro só", deve chamar-

Soneteando meio torto.

Singrando em minha pele Teu corpo vai, sem hora E o tempo de outrora Não faz que se revele. Se não mais vivo aquele Penar que de outra vez Corroía minha tez Teu olhar que assim sele Compromisso de não ter às vistas de quem olha Compromisso algum de ser Pois que noite que o valha Se vem deste teu prazer Vale mil tu'a migalha.