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Sobre a morte.vida.morte.vida.morte.vida.morte.

"Vivo de mim mesmo, de minha própria crença, apesar da afirmação de que vivo não ser, talvez, senão um mero preconceito. Basta que eu fale com um homem 'cultivado' qualquer, que tenha vindo veranear na Alta Engandina, para convencer-me de que NÃO vivo. Assim, pois há um dever imperioso contra o qual se revolta até no íntimo o hábito, e, mais ainda, o orgulho dos meus instintos. Consiste este dever em proclamar:
- Ouvi-me! EU SOU ALGUÉM E, SOBRETUDO, NÃO ME CONFUNDAIS COM QUALQUER OUTRO!"
Friederich Nietzsche.

Quantas vezes fala-se em morte na vida? Não me refiro a falar sobre os nove tiros que fulano levou à queima-roupa quando chegava na favela do trabalho, nem das pessoas arrastadas, defenestradas, incendiadas, nem demais atrocidades do Jornal Nacional.
Me refiro à morte. Falar sobre morte; vida-morte. Como diz a música "the moment you're born you start dieing, so you might as weel have a good time". Morte não é o oposto de vida. Não são conceitos antagônicos, tanto quanto complementares. Morte e vida são a mesma laranja (porque falo tanto de laranjas aqui?). São do mesmo fruto, se você morder de uma metade, vai necessariamente morder da outra.
Então, novamente: quantas vezes fala-se em morte na vida? Quem puxa um assunto na mesa de bar: "Então, esses dias estava escrevendo meu testamento, e andei pensando que, se por um acaso eu morrer de alguma doença crônica, vou orientar que me cremem, posto que meus órgãos já não estarão bons pra doação. Já caso eu morra num assalto..." A reação das pessoas ao redor variaria do "estou estupefato" ao "ai meu deus, que nojo", passando por todos os critérios morais e bons cristãos que conformam o pensamento atual. Quem, enfim, vai olhar cara a cara o rosto do morto no caixão, seu avô, sua avó, seu tio, pai, mãe, filho, amigo, chefe, você mesmo, quem olha o rosto da morte de frente?
Dia desses ouvi, sobre uma crítica à psicanálise - e lá vou eu irritar a turba novamente - que ainda se prende à primazia do tabu do incesto, nisso, apoiada por alguma antropologia, que adota o entendimento psicanalítico da produção simbólica do homem. Mas a posição da crítica questionava justamente que o tabu da atualidade não teria referências à sexualidade, pedindo-se inclusive nota para todos os corpos nus e cenas explícitas veiculados por todos os tipos de mídias e formadores de opinião, mas sim, o tabu da sociedade pós-moderna-de-espetáculo-da-ansiedade é não outro senão a morte. Ela mesma, aquela que está no meio de nós. Não se pode envelhecer, não se pode adoecer, não se pode deteriorar, não, em hipótese alguma, não se pode morrer.
Não é a toa que se produzam tantos "jogos mortais" por hoje em dia. A sombra da nossa alma também precisa se alimentar. E esta pseudo-apolineidade faz com que a cada dia mais crianças sejam defenestradas e arrastadas pelo mundo. Não que isso não houvesse antes. Mas a sombra tem que pipocar em algum lugar. E é sempre assim: tudo a que se nega sua devida expressão, tudo o que se tampona, jorra com muito mais força no primeiro buraco de furo de alfinete que aparecer. E aí, meus amigos, vêm rasgando.

Mas porque falar de morte aqui? Agora? Hoje? Neste blog? Porque há diálogo, morte e solidão.
Tudo bem, todos os blogs dque por aí falam do passo-a-passo do dia-a-dia, do cotidiano moroso de cada um. Falo hoje então de morte para falar da minha morosidade, pra falar de algo que me aconteceu - e quem sabe assim ter mais "ouvintes".
Falo de morte, porque quase andei morrendo por este dias. Falar que quase se morreu quando dois dias depois se está lépida e fagueira pode parecer exagero. Mas isso aqui é filosofia estrangeirista, então cabe, posto que a vivência da quase morte - e não me refiro às experiências EQM - a vivência da quase morte é do diâmetro da solidão.
A quase morte neste caso é a ciência de que se está absolutamente sozinho. Sempre há um dito popular para tudo, e alguns ditos deveriam pensar mais sobre si mesmos para ver o que realmente estão falando. Para cá, temos o tal "nasci sozinho e vou morrer sozinho". Verdade. Até certo ponto. Já foi dito antes aqui, neste mesmo batblog, que a experiência é individual e única, que ninguém pode viver a vivência do outro. Isso é uma coisa. Mas pode-se presenciar. Estar presente. Ver. Dar o reconhecimento ao outro a partir do seu olhar. Reconhecer assim a verdade de sua existência. Estar ali. Testemunhar. Witness.
A minha experiência de quase morte - que nem perto de morte real se aproximou - foi a constatação nua de que, sim, se eu morrer agora, aqui, nesse chão, a verdade da minha morte se perderá no tempo, ficaremos eu e minha morte irremediavelmente sozinhas, porque ninguém nunca mais testemunhará que morri.
Morrer sozinho é como se morre. Mas morrer sozinho estando sozinho, e ser descoberto quando começar a festa dos ratos, isso não. Não deve ser nada bom. Nem os suicidas! Sim porque sou convicta de que os suicidas sempre morrem para alguém. Não conheço nenhum suicida que tenha-se desovado num valão pra que ninguém encontrasse seu corpo, e, em o encontrando, não o reconhecesse. O suicida se joga em meio ao trânsito, pendura-se no centro da sua sala, porque ele quer dizer algo. Ele quer que saibam que chega. Acabou. Mas vocês saberão que acabou, e compatilharão com ele o trágico do humano, a presença e o rosto daquela que chega para acolher a todos. Serão as testemunhas de que a roda da vida mais uma vez rodou.
A solidão é inerente ao viver do homem, mas o testemunho do outro é o recurso para o reconhecimento da sua verdade.

Nasce-se sozinho. Vive-se sozinho. Morre-se sozinho. Mas o bom mesmo é quando sozinhos, temos alguém por perto.

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