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Assim me tornei meu pior pesadelo.

Você entrou na minha vida. Bem por ali, vê? Fez. Aconteceu. Gato. Sapato. E eu ia te seguindo. Deixei disso, daquilo. Eu era tudo o que você não queria! Assim, assado, te ensinando o que você não queria aprender, aprimorando o que você não queria que eu fosse. Tudo o que você nunca imaginou! E você era tudo o que eu não precisava. Você via nas outras o que eu não era, e eu via em você o que achava que poderia vir a ser. Eu mudava e você se adequava. Eu aceitava e você disfarçava.
E foi assim que comecei a ver. Tudo o que eu não era. E aquilo que eu não conseguia. E o que nunca poderia ser. Aos poucos, deixei de ver o que eu poderia fazer de você e comecei a perceber o que nunca seria de mim. Podia senti-la emergindo sob a epiderme. Ela, eu mesma que não era assim. Ela tinha outros olhos, que viam outras coisas de outras formas. E ao olhar pra você, via tudo o que eu não queria, e só isso. Eram os olhos dela vendo o que não podia ser pior, me cegando para todo outro possível você. E ao te ver assim, me via nela. A via em mim. E me odiava. E te culpava.
Então eu via o pior de nós dois em retroalimentação. Mas o pior de mim era a incapacidade de outra coisa qualquer que não nós dois, assim, desta forma. Porque o melhor de nós dois estava atado feito amor, amor que não solta. E este maldito lado nos prendia no mundo ruim do que não éramos.
E foi assim que me tornei meu pior pesadelo.
Mas sinceramente não sei quando se acorda.

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