Pular para o conteúdo principal

Impressões de uma entrevista analítica.

"E então, você pode me ajudar?" Deveria, visto que teoricamente você estaria me pagando para isso. Mas o que vem a ser "ajudar"?
Na verdade, o buraco é mais embaixo. O que é exatamente esta profissão que se propõe a ouvir as mazelas do mundo e fazer algo com elas? Fazer o que com elas?
As pessoas sofrem, meu deus!, como sofre o ser humano! Ou, como diria brilhantemente um querido parente, como sofre quem padece! Escarafunche a vida de qualquer um próximo a você, o porteiro, a moça que senta à mesa da recepção do seu escritório, aquele gordinho que toma o mesmo elevador que você todas as manhãs, sua tia, você mesmo. Inevitavelmente vai achar uma história de por no chinelo as novelas da Globo, com traços rodrigueanos, influências nietzschenianas, releitura de Bukowsky. Fernando Pessoa e Clarice Lispector, Augusto dos Anjos, parecem que falavam para si quando escreveram aquelas tais ou quais frases, não é mesmo? Tudo é possível no universo da vida humana. E ainda assim, não sabemos lidar com nada disso. Sentimos dor. Choramos sozinhos à noite. Odiamos alguém a quem nem conhecemos direito apenas por que esta pessoa nos faz lembrar remotamente aquilo que mais queremos esconder de nós mesmos. Nos culpamos por rir. Nos odiamos por chorar. Nos obrigamos a fazer o que não queremos, a estar com quem não amamos, a falar o que não pensamos, por achar que devemos ou merecemos. E doemos, doemos e doemos.
Então, você chega ao meu consultório, me diz tudo isso e arremata: "o que eu faço com isso agora? Pode me ajudar?" Eu??!! Santa mãe de deus! Eu, fazer algo com a existência humana? Socorro! Pois é exatamente esse o primeiro movimento na análise: tome, sr. (sra.) analista, aqui está o seu lugar de deus, orixá, demônio, força da natureza, girador da roda do destino, moira fiandeira, rivotril, ou o que quer que se assemelhe com o poder absoluto de resolver os meus problemas! Obviamente, no decorrer da análise, vão-se os pingos pondo-se devidamente sobre seus is, e cada um passa a assumir mais honestamente as responsabilidades que lhes cabem respectivamente em qualquer que seja o resultado do processo analítico.
Obviamente, estou fazendo uma caricatura da relação, mas, mesmo os pares analista-analisando mais lúcidos que há por aí, em algum momento do percurso, por mais breve que tenha sido, viram-se nesta situação. O curandeiro frente ao desespero do outro. E é aí onde queria chegar: o desespero do outro. Posso dizer com folga que já ouvi perto de 200 histórias de vida nos anos da minha profissão, e afirmo com segurança que nenhuma, nem umazinha só, foi sequer parecida com a outra. Quando alguém senta-se à minha frente e começa a me dizer quem é, o que passou, como se vê, o que lhe importa da sua história, é impossível me furtar de pensar "mas que maravilha!" Por que é lindo, é tão lindo o existir, é tão bonita a vida das pessoas, que freqüentemente me emociono, não pelo fato em si que estejam me contando, mas pela carga de emoção e vida que trazem no relato. É intenso, ouvir o que alguém, depois de muita coragem reunida, consegue revelar sobre o que mais lhe dói, o que lhe faz chorar e querer morrer, o que lhe dá prazer e faz com que se agarre à vida. Ouvir a cada relato destes é ver esta pessoa criar-se diante de mim. E como são belas estas pinturas!
E então, se o problema tem solução? Se vou te ajudar? Se posso te curar? De nada disso eu sei. O que posso é estar ali durante aquele tempo, toda semana, compartilhando o seu criar-se e recriar-se até que tome a forma desejada, ou o mais próximo disso que puder. E minha alma estará aberta para dialogar com a sua, na beleza de viver o que é a vida com tudo o que ela trouxer, nem mais, nem menos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob

Estrangeirismo

Estrangeirismo. Extranjero. Étranger. Étrange. Strange. Stranger. Estranho. Platão, pai da filosofia como nós a conhecemos desta metade da laranja, vê no estranhamento a origem da filosofia. O Homem começa a filosofar porque sente este estranho estranhamento do mundo. Eros é quem filosofa, esse daimon do intermédio que está entre a sabedoria e a falta de recursos. Eros é impulsionamento, e se não lhe houvesse a falta, não lhe haveria o movimento. Por outro lado, temos a já enxovalhada frase que afirma que "o Homem é um ser gregário". Vivemos no outro. Nos constituímos no jogo de identificação e diferenciação com o outro. No olhar do outro. No toque. É preciso estranhar. Mas é preciso pertencer também. A solidão é um tema arquetípico dos mais densos, e pertence ao mundo do estranhamento, da não pertença, do estrangeirismo em todo lugar. Quantas pessoas devem sentir-se assim em todo mundo, estrangeiras em qualquer lugar? "Eu não sou daqui, marinheiro só", deve chamar-

Não feliz.

Tudo bem? Não. Quantos esperam ouvir esta resposta quando cumprimentam alguém? Por que esta é uma resposta possível. Não, não estou bem. Não, as coisas não vão bem, e não, não está tudo bem comigo. Mas não é o que esperam, pois "tudo bem?" não é uma pergunta sincera. É apenas uma expressão idiomática usada para abrir comunicações informais. Quem pergunta não quer realmente saber se vc está bem ou se sofre. Quer apenas introduzir um assunto de interesse de ambos - ou não. E mais: quem pergunta, por mais que se importe, não quer mesmo ouvir que nada vai bem como resposta. É proibido não ser feliz. Se eu pergunto se está tudo bem, a resposta deve ser "sim, tudo vai bem comigo! e com você aí? Vai bem também? Tão bem como vai comigo? Tão bem ou melhor ainda?". Ora, deixem-me em paz! Deixem a tristeza em paz! Não, as pessoas não estão bem sempre e sim, tem horas em que tudo está uma grande merda. Mas por inúmeros motivos, ninguém sabe lidar com isso. Temos todos que se