Há um filme chamado "Como se fosse a primeira vez", cujos detalhes acerca de atores, personagens, diretor, etc., não darei aqui pois não interessam ao tema, pra isso o hiperlink, que trata de uma moçoila que sofre de amnésia anterógrada (Korsakoff), impedindo a memorização de curto prazo imediatamente após o trauma. Simplificando: a cada adormecer, ela "apaga" os acontecimentos recentes entre o trauma e aquele momento, como se estivesse "congelada" naquele último instante anterior ao, no caso, acidente.
No filme, o mocinho quer a mocinha e, a máxima romântica explorada pelo enredo, tem que conquistá-la novamente toda manhã, again and again. Não nos interessa aqui o processo, mas sim o resultado: como é um filme, e todos viveram felizes para sempre, eles casam-se, têm uma linda filhinha e passeiam de barco pelos mares árticos. Para que isso seja possível, ele levanta-se antes dela todas as manhãs e deixa ao seu lado da cama uma fita de vídeo, com todas as informações que ela precisa para se organizar, um sumário de tudo o que aconteceu desde o acidente, e aí então, ela pode passar o dia feliz ao lado de sua família, sem achar que o homem ao seu lado é um estranho, maníaco, sequestrador, um mero desconhecido.
Ok. Bonito isso, não? O que este enredo não supõe, final feliz que é, é a possibilidade desta moça um belo dia resolver se questionar: será que devo acreditar nisso tudo mesmo? E se esta pessoa ao meu lado estiver manipulando as informações, mostrando-me apenas o que quer que eu saiba, controlando as recordações que devo ou não devo ter? E se ontem eu tiver tentado me separar dele, o tiver mandado embora, se ele me tiver feito algum mal, e hoje o que me mostra são lembranças felizes, hoje o que me mostra é uma parcela, a parcela da realidade na qual ele quer que eu acredite? E se eu simplesmente não tiver escolha?
O que torna possível uma existência em paz para essa menina é, então, nada mais que a confiança. Embora fictício - e provavelmente inalcançável - este é um perfeito exemplo da total confiança na verdade que o outro te oferece. O bom e velho - e negligenciado ao extremo - princípio da justiça, de que qualquer um é inocente - e está dizendo a verdade - até que se prove o contrário.
Uma das sintomatologias neuróticas que mais encontra-se por aí atualmente é justamente o oposto: qualquer um pode me fazer mal a qualquer momento. Qualquer tipo de mal. E isso implica necessariamente em que me defenda. Esta lógica está diretamente ligada à incapacidade de confiar, o que quer que seja, a quem quer que seja. Será mesmo que ele foi jogar futebol ontem a noite? Será mesmo que ela não deu bola pra alguém enquanto fui ao banheiro? Será mesmo que ela não está dando em cima do meu namorado? Será mesmo que ele ficou feliz com o sucesso do meu empreendimento?
Não vamos questionar o outro lado da neurose, a neurose do outro, que é incapaz de ser fiel, de ser sincero, de ser honesto. Atenha-mo-nos ao lado de quem é incapaz de viver em paz com o simples gesto de não duvidar, não questionar a validade da verdade que lhe apresentam. Não interessa se é verdade ou não do lado de lá; eu não porei em dúvida até que se prove o contrário. Parece impossível, não?
Pois imagine isso: não basear suas atitudes na atitude alheia. Independe se o outro mente ou não, eu não questiono sua verdade. Independe se usa de educação comigo, eu abro-lhe a porta e lhe dou passagem. Independe se me sorri ou zanga, eu lhe sorrio, porque é esta postura que quero de mim no mundo. Pode-se aqui argumentar que a ética - assim como a existência humana - é condicionalmente relacional. E darei todo meu apoio a este argumento. Mas o que muda é o sentido da relação: ao invés de agir com base no outro, provocar a resposta da reação. Assim: não sorrir ou zangar se o outro lhe sorri ou zanga, mas sorrir antes de tudo, porque o que espero de volta é o sorriso do outro. Ser agente mais que reagente. Certo, isso já é outro pano pra outra manga.
Enfim, a possibilidade da confiança pura, como descrita acima é fundada ao assumir a responsabilidade em si mesmo. Se confio na verdade que me oferecem, e amanhã ou depois, descubro uma realidade que não condizia com o que me era apresentado, não há que se julgar o outro: ontem confiei numa verdade, hoje confio em outra que desdiz a primeira, e uma é tão transitória quanto a outra; me servem ambas a compreender as modalidades de relação que cada pessoa ao meu redor estabelece comigo.
Poderia aprofundar tudo isso tanto mais ainda hajam caracteres a se digitar, tamanho é o universo acerca das relações que se expande nos meus pensamentos. Mas não posso desenvolver mais agora; quem sabe ainda porvir. As frases pra finalizar este texto parecem fugir um pouco ao tema central, mas são as que se impõem a mim como arremate: só o que há é transitoriedade. E o outro não sou eu não sou o outro.
No filme, o mocinho quer a mocinha e, a máxima romântica explorada pelo enredo, tem que conquistá-la novamente toda manhã, again and again. Não nos interessa aqui o processo, mas sim o resultado: como é um filme, e todos viveram felizes para sempre, eles casam-se, têm uma linda filhinha e passeiam de barco pelos mares árticos. Para que isso seja possível, ele levanta-se antes dela todas as manhãs e deixa ao seu lado da cama uma fita de vídeo, com todas as informações que ela precisa para se organizar, um sumário de tudo o que aconteceu desde o acidente, e aí então, ela pode passar o dia feliz ao lado de sua família, sem achar que o homem ao seu lado é um estranho, maníaco, sequestrador, um mero desconhecido.
Ok. Bonito isso, não? O que este enredo não supõe, final feliz que é, é a possibilidade desta moça um belo dia resolver se questionar: será que devo acreditar nisso tudo mesmo? E se esta pessoa ao meu lado estiver manipulando as informações, mostrando-me apenas o que quer que eu saiba, controlando as recordações que devo ou não devo ter? E se ontem eu tiver tentado me separar dele, o tiver mandado embora, se ele me tiver feito algum mal, e hoje o que me mostra são lembranças felizes, hoje o que me mostra é uma parcela, a parcela da realidade na qual ele quer que eu acredite? E se eu simplesmente não tiver escolha?
O que torna possível uma existência em paz para essa menina é, então, nada mais que a confiança. Embora fictício - e provavelmente inalcançável - este é um perfeito exemplo da total confiança na verdade que o outro te oferece. O bom e velho - e negligenciado ao extremo - princípio da justiça, de que qualquer um é inocente - e está dizendo a verdade - até que se prove o contrário.
Uma das sintomatologias neuróticas que mais encontra-se por aí atualmente é justamente o oposto: qualquer um pode me fazer mal a qualquer momento. Qualquer tipo de mal. E isso implica necessariamente em que me defenda. Esta lógica está diretamente ligada à incapacidade de confiar, o que quer que seja, a quem quer que seja. Será mesmo que ele foi jogar futebol ontem a noite? Será mesmo que ela não deu bola pra alguém enquanto fui ao banheiro? Será mesmo que ela não está dando em cima do meu namorado? Será mesmo que ele ficou feliz com o sucesso do meu empreendimento?
Não vamos questionar o outro lado da neurose, a neurose do outro, que é incapaz de ser fiel, de ser sincero, de ser honesto. Atenha-mo-nos ao lado de quem é incapaz de viver em paz com o simples gesto de não duvidar, não questionar a validade da verdade que lhe apresentam. Não interessa se é verdade ou não do lado de lá; eu não porei em dúvida até que se prove o contrário. Parece impossível, não?
Pois imagine isso: não basear suas atitudes na atitude alheia. Independe se o outro mente ou não, eu não questiono sua verdade. Independe se usa de educação comigo, eu abro-lhe a porta e lhe dou passagem. Independe se me sorri ou zanga, eu lhe sorrio, porque é esta postura que quero de mim no mundo. Pode-se aqui argumentar que a ética - assim como a existência humana - é condicionalmente relacional. E darei todo meu apoio a este argumento. Mas o que muda é o sentido da relação: ao invés de agir com base no outro, provocar a resposta da reação. Assim: não sorrir ou zangar se o outro lhe sorri ou zanga, mas sorrir antes de tudo, porque o que espero de volta é o sorriso do outro. Ser agente mais que reagente. Certo, isso já é outro pano pra outra manga.
Enfim, a possibilidade da confiança pura, como descrita acima é fundada ao assumir a responsabilidade em si mesmo. Se confio na verdade que me oferecem, e amanhã ou depois, descubro uma realidade que não condizia com o que me era apresentado, não há que se julgar o outro: ontem confiei numa verdade, hoje confio em outra que desdiz a primeira, e uma é tão transitória quanto a outra; me servem ambas a compreender as modalidades de relação que cada pessoa ao meu redor estabelece comigo.
Poderia aprofundar tudo isso tanto mais ainda hajam caracteres a se digitar, tamanho é o universo acerca das relações que se expande nos meus pensamentos. Mas não posso desenvolver mais agora; quem sabe ainda porvir. As frases pra finalizar este texto parecem fugir um pouco ao tema central, mas são as que se impõem a mim como arremate: só o que há é transitoriedade. E o outro não sou eu não sou o outro.
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Estranhe.