Pular para o conteúdo principal

Diálogos 1: Morte em vida.

- Foi?
- Fui?
- Já?
- Já.
- E já voltou?
- Já!
- Porque?
- Não deu certo.
- Mas como?
- Não sei direito.
- O que aconteceu?
- Muita coisa.
- Muita coisa o que?
- Ah, não dá pra contar... Pra falar teria que ir do início...
- Faz isso então, oras!
- Não posso.
- Porque?
- Tem muita coisa que não lembro.
- Faz um esforço.
- Não consigo.
- Porque?
- Dói.
- Dói?
- Dói.
- Foi tão ruim assim?
- Não.
- Então?
- Foi maravilhoso.
- Então porque não lembra?
- Por que não deu certo. Fiz questão de esquecer.
- Mas se você foi lá e tudo! O que pode ter dado errado?
- Não sei, algo no meio do caminho, talvez...
- Você diz, a estrada?
- Não, não é isso.
- Então?
- A hora em que cheguei.
- A hora em que chegou? Que tem?
- Era tarde.
- Da noite?
- Não, demais. Era tarde demais.
- E o que...
- Ele já estava morto. Não houve o que pudesse...
- Morto?! Mas me parecia tão...
- Vivo, eu sei. É apenas impressão. Mortinho.
- Quem diria...
- Eu não.
- Nem eu. Se ao menos você...
- Se ao menos eu o que? Não me culpe!
- Não, não, não é isso. Mas você não acha que...
- Que poderia ter chegado a tempo? Não, não mesmo. Já estava bem estragado quando o vi. Fedia.
- Ô, dó....
- Foi melhor assim...
- Vai saber...
- ...
- Mas, e você... vai de novo?
- Novamente? Acho melhor não.
- Ora, vá!
- Não sei, eu...
- Que tem?
- Eu tenho medo...
- De que? De não dar certo novamente? Ora vamos, deixe de besteiras!
- Tudo bem.
- Tudo bem o que?
- Eu vou.
- Vai?
- Amanhã eu vou. Amanhã...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Shiva, Vishnu e Brahma, Nietzsche, Heidegger e Sartre.

A existência é perfeita. Nem mais nem menos. Não se deve questionar o que se lhe acontece, porque é a perfeição. A existência é perfeita e você está exatamente onde deveria estar nesse momento. O que lhe acontece é exatamente da forma como deveria. Todos os milhares de seres que atravessam seu caminho ao longo do dia, deveriam estar precisamente ali naquele momento, não antes, não depois, não em outro caminho, mas no seu, naquele instante único. A unicidade é a precisão da existência. Porque só existe isso agora. E o que existe é minuciosamente programado para vir a ser, nesse único instante do existir. O existir não é linear. É apenas um ponto,o ponto do instante. Não existe antes nem depois, apenas isso, o instante que há, é onde eu existo. Eu não fui nem serei. Tampouco sou. Eu estou sendo. O momento do devir. E eu devenho a cada instante que é um só. O que há é apenas o agora. O que foi e o que será não têm consistência. É vago, etéreo, onírico. O único real é o do momento presen...

Eu prefiro a madrugada.

Eu prefiro a madrugada. O silêncio. O distanciamento. Eu prefiro a madrugada, quando a maior parte não está aqui. Quando o tempo parece congelar. Quando só eu existo. Eu prefiro a madrugada, quando os pensamentos soam mais alto. Eu prefiro a madrugada, quando eu brilho no escuro. Eu prefiro a madrugada, onde todos os gatos são pardos. Onde eu posso me ouvir melhor. Eu prefiro a madrugada, porque não se precisa mentir nem inventar. Prefiro a madrugada porque é mais sincera. Prefiro as madrugadas insones, onde se sonha mais alto. Prefiro as madrugadas sóbrias, quando se vê mais ao longe. Eu prefiro a madrugada. Que é mais lenta. Que não nos atropela. Eu prefiro as madrugadas e seus ritmos sem pressa. O ritmo do agora. Prefiro lembrar o que me disse numa madrugada. Prefiro as madrugadas solitárias. E eu prefiro a madrugada com você aqui.

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob...