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Paixão, doença e morte.

Doença, seu sinônimo: patologia. Patologia, etimologicamente do grego, logos, como em todas as logias, com esse sentido adaptado para 'estudo' e pathos, paixão. A Grécia Antiga lidava com as paixões do corpo, termo que foi utilizado até muito recentemente na Idade Média por todos aqueles que ocuparam o lugar de médicos, les medicins. Paixões do corpo, que eram responsáveis tanto pelos aspectos físicos quanto pelo comportamento das pessoas, épocas em que as pessoas eram uma coisa só. E a "cura" não consistia em extinguir, exterminar, eliminar, esconder, se livrar de coisas que pertencem inerentemente ao homem. A cura era o equilíbrio.
Em muitos lugares e épocas foi assim, e buscava-se tal bem estar através de diversos artifícios: intelectuais, desporto, ascetismo, exercícios de mente, corpo e espírito, o TAO. Sounds good to me.
A medicina atual difere um bocado disso. Cura é sinônimo de não morrer, não doer, não sofrer (sabendo que corro o risco de apanhar por esta afirmação...). Febre, dores no corpo, dor de cabeça, na verdade aquilo que não deve ser combatido, mas justamente os sinais que nos indicam que nosso organismo, como um todo, combate algo que tenta avariá-lo, é justamente o que é superficialmente combatido. Como um todo, não importa onde esteja o desequelíbrio, todo o seu corpo se envolve na luta contra o "inimigo". E ninguém foge à guerra. É uma batalha para Sun Tzu algum botar defeito.
Eu quase mesmo posso ver, todo o movimento interno, a febre, o sangue, a digestão, cada dor, tudo movendo-se numa prefeita sinfonia dentro de mim, dizendo a este todo o que fazer: agora descanse; agora beba líquidos; agora sue; agora trema de frio. E é absolutamente assim que funcionamos há aproximadamente 12 mil anos. Com algumas modificações e improvements, é claro.
Este não é um texto para criticar a medicina moderna (nem medicina alguma, cada uma com seu zeitgeist), até porque, para isso eu teria que fazer jus a todos os benefícios alcançados com as ciências modernas, análises comparativas, estatísticas e todo um rol de blábláblá a que não me proponho agora.
Mas este é um texto porque eu sinto, e me ocorre desta forma: prestemos atenção a esta estrutura organizacional a que chamamos eu, com tudo o que lhe cabe. Quando tomo um antibiótico após uns dois dias lutando contra um quadro de batalha qualquer, a imagem que imediatamente me vem à cabeça é todas as partes que me doem, que estão quentes demais, inchadas, vermelhas, dentro ou fora, todos seus soldados já cansados, chamando backups, fazendo contenção de víveres, e gritam agora: "Vejam, reforços! Estamos salvos!!" Por outro lado, quando, ao menor sinal de uma dorzinha de cabeça, enviamos os melhores batedores e a cavalaria dos aliados já para dentro, ouviria os anticorpos recémchegados ao set da batalha, desanimados e injuriados: "Mas estávamos falando algo, não nos ouviram? Mal começamos! Oras, não precisam de nós aqui...", e retiram-se, insatisfeitos, rejeitados, desistem da carreira militar, ficam gordos e flácidos, perdem o manejo das armas, não saberiam mais lutar contra uma criança de 5 anos.
Ok, isso aqui é que parece uma história para uma criança de cinco anos, mas é assim que me sinto hoje - como um campo ativo de batalha, não como uma criança de cinco anos. Uma última reflexão que me assalta: hoje em dia recorremos aos remédios e tratamentos, cada vez mais modernos, que vem em socorro quando nosso todo ameaça perder a batalha, ou, no mínimo, exaurir-se demais. Mas e antigamente? Antigamente, três dias de febre alta, a luta consumindo mais e mais forças, o corpo pedindo arrego... morria-se. Antigamente morria-se, muito mais do que se morre hoje. Por causas muito mais simples. Sentia-se toda essa batalha dentro de si, e sabia-se quando a guerra era perdida. Saber e acompanhar o morrer. Viver o morrer. Morrer é inexorável. Mas sinto que não o sabemos mais fazer.

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