Pular para o conteúdo principal

Arretância.

Adorava a história de que nascera 15 dias antes do previsto. Quando soube a primeira vez, foi como se toda sua vida se tivesse explicado por aquele simples fato. Divertia-se ao contar e recontar isso a quem quisesse ouvir; empombava-se de orgulho para dizer que nascera naquele dia, o seu dia, não definido por ninguém, por médicos, calendários, agendas, feriados: no dia em que ela própria escolhera nascer. Agradava-a também a idéia de que tinha pressa em ir ver o mundo, a verdadeira contestação da psicanálise: sim, era muito bom estar no conforto e segurança do útero materno, mas chega!, queria correr os riscos da vida lá fora, sozinha, por si mesma. Nada de colinho da mamãe; ela queria correr riscos.
Logo descobriria que essa fora a primeira de muitas escolhas que haveria de fazer na vida. Aliás, tudo seria escolha, todo o tempo, e ela não recuaria diante das opções. Nascer antes do previsto significava para ela o prenúncio de sua personalidade a se desenvolver. Nunca foi de ficar em casa, nunca dormira cedo, nunca seria a primeira a ir embora, nunca deixaria de se envolver, nunca se envolveria em algo com o que não estivesse apaixonada. Queria ver o mundo; o mundo, as pessoas, as relações, o movimento. O movimento sempre fora fascinante. Podia ver o movimento de uma rocha existindo. Porque sabia que existência é movimento. Olhava aquelas rochas imensas de sua cidade, e quase que podia senti-las pulsando como um coração, como vida, como a carne de um planeta que é vivo.
Assim vendo o mundo, sempre, sempre lá fora a ver o mundo, suas escolhas eram condicionadas por essa necessidade sufocante de estar no mundo. Tudo o que escolhia era experiência, sua escolha sempre a mesma, escolhia experiência. Seus olhos viam através, a realidade ultrapassava a superfície das coisas e seu empirismo era tamanho que seus próprios sonhos ganhavam o estatuto de realidade. Sonhava tão colorido, tão intenso, tão real, que na verdade, estava no mundo experimentando até mesmo quando dormia.
E foi construindo o seu mundo. Com fome de mundo, nunca retornando, nunca recuando, acrescendo a cada perda; "muito obrigada, mãe, foi bom o seu abrigo, mas minhas asas a cada dia cabem menos em seu vaso." Sempre em movimento. E no frescor da juventude, corria. Sorria. Magia. Não questionara em momento algum escolher diferente do que sua alma propunha; confiava nos seus daimones como quem confia a própria vida a alguém.
Mas o mistério aguardava o momento certo de apresentar-se. E, no passar da idade, percebeu-se só. Suas escolhas haviam construído para si um mundo próprio, distante dos mundos das outras pessoas. Embora de portas abertas, poucos eram os que sabiam entrar no mundo alheio sem guerrear destrutivamente, como quando se visita um país estrangeiro, come-se e bebe-se da sua cultura e depois volta-se para sua casa familiar e segura. Não sabiam fazê-lo. Ou, de outro modo, ficavam de fora, espreitando, com medo de entrar e nunca mais sair deste mundo tão diferente que ela criara para si.
E viu-se só, porque escolhera a si mesma. Escolhera escolher o que ouvia de dentro para fora, e não o inverso. Não encontrava quem pudesse compartilhar de seu mundo sem amordaçar seus daimones, sem desvitalizar suas escolhas, e disso era algo de que não estava disposta a abrir mão. "Ah, não, não isso! Meu mundo, que sempre escolhi, o qual tanto afã de conhecer tive desde o primeiro momento, não, não é barganhável!"
Mas, por outro lado, não queria ficar só. A intensidade com que se movia, criando realidade, assutava a muitos, que sentiam-se incapazes de a acompanhar. Foi então que, pela primeira vez na vida decidiu parar. Não parar o movimento, que isso é inexistência, mas parar a ação. Parar o agir. Escolher não escolher. Pela primeira vez na vida, escolheu não escolher. O não fazer, que automaticamente implicaria em não esperar resultados, posto que nada havia sido feito. O resultado haveria, claro, pois efeitos não dependem de suas causas, mas ela não mais os esperaria, que poderiam ser qualquer coisa no mundo, afinal, ela nada havia feito.
E nada fazendo, o movimento seria livre para vir a ela, sem que dela o agir incidisse sobre o movimento. E isso seria bom. Pela primeira vez na vida, parar. E esperar a ação do movimento. Mas antes de por sua idéia de parar em prática, havia mais uma coisa a fazer: foi ao mundo e lá pôs um aviso no grande mural: "Encontre a porta branca ao fim do corredor, em novissima verba criar-se-á o novo mundo."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob

Estrangeirismo

Estrangeirismo. Extranjero. Étranger. Étrange. Strange. Stranger. Estranho. Platão, pai da filosofia como nós a conhecemos desta metade da laranja, vê no estranhamento a origem da filosofia. O Homem começa a filosofar porque sente este estranho estranhamento do mundo. Eros é quem filosofa, esse daimon do intermédio que está entre a sabedoria e a falta de recursos. Eros é impulsionamento, e se não lhe houvesse a falta, não lhe haveria o movimento. Por outro lado, temos a já enxovalhada frase que afirma que "o Homem é um ser gregário". Vivemos no outro. Nos constituímos no jogo de identificação e diferenciação com o outro. No olhar do outro. No toque. É preciso estranhar. Mas é preciso pertencer também. A solidão é um tema arquetípico dos mais densos, e pertence ao mundo do estranhamento, da não pertença, do estrangeirismo em todo lugar. Quantas pessoas devem sentir-se assim em todo mundo, estrangeiras em qualquer lugar? "Eu não sou daqui, marinheiro só", deve chamar-

Não feliz.

Tudo bem? Não. Quantos esperam ouvir esta resposta quando cumprimentam alguém? Por que esta é uma resposta possível. Não, não estou bem. Não, as coisas não vão bem, e não, não está tudo bem comigo. Mas não é o que esperam, pois "tudo bem?" não é uma pergunta sincera. É apenas uma expressão idiomática usada para abrir comunicações informais. Quem pergunta não quer realmente saber se vc está bem ou se sofre. Quer apenas introduzir um assunto de interesse de ambos - ou não. E mais: quem pergunta, por mais que se importe, não quer mesmo ouvir que nada vai bem como resposta. É proibido não ser feliz. Se eu pergunto se está tudo bem, a resposta deve ser "sim, tudo vai bem comigo! e com você aí? Vai bem também? Tão bem como vai comigo? Tão bem ou melhor ainda?". Ora, deixem-me em paz! Deixem a tristeza em paz! Não, as pessoas não estão bem sempre e sim, tem horas em que tudo está uma grande merda. Mas por inúmeros motivos, ninguém sabe lidar com isso. Temos todos que se