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Incompletude

Há muito não escrevo. Há muito não escrevo algo que seja realmente aquilo que escrevo, o que quero escrever, que saia de mim mesma. Há muito não escrevo e é como se silenciasse, um período de silêncio existencial. Não porque não escrevo. Não preciso escrever pra existir. Mas porque não escrever é sinônimo de algo. Não escrever sobre a existência é sinal ou sintoma de que há um algo na existência que está diferente, que está, talvez, imóvel, ou desconectado, ou inerte.

É como se a vida fosse passando me atropelando. Me atropelando sempre está. Não é isso. É como se deixasse de pensar no que me acontece, deixasse de sentir. Uma vida não sentida. Só posso escrever do sofrimento de existir. Já dissera aqui outrora que a calmaria existencial é veneno para minha criatividade. Mas a descoberta é que esse sofrimento de existir não significa problemas, doenças, perdas, acontecimentos ruins na vida, não significa apenas isso. Sofrimento de existir é sentir-se na existência, sentir que as coisas acontecem a você, que é você ali, encarnado, vivo, que a vida é sua e ninguém a vive, mas você.

É possível até que todo o resto não exista. É possível que a existência de todo o mundo aconteça porque você os faz existir. É possível que vc esteja criando este texto no exato momento em que lê, assim, dando vida à minha existência. É possível que as coisas aconteçam à sua frente no instante exato em que você olha para elas, desaparecendo assim que desvie o olhar, condicionando desta forma a existência do mundo ao poder criador da consciência. Todo o resto está inconsciente em mim e é forte o sentimento de existir num mundo que é pura possibilidade ao meu redor.

Se pararmos de sofrer a existência e começarmos a viver o mundo como dado, as coisas como assim mesmas, se páro de perceber a criação da consciência sobre a minha realidade, é aí que enveneno minha criatividade, é aí que não escrevo. Mas o gozado de tudo é que isso acontece, costumeiramente quando estou feliz. Não, não é feliz a palavra, mas os momentos de baixa emocional são aqueles em que tudo parece ir bem. Nem muito bom, nem muito mal, apenas bem. Normal. Sem grandes acontecimentos.

Por outro lado, o que transforma um acontecimento em grande acontecimento não são suas características intrínsecas, mas sim, a maneira como o vivemos, se nos atirando de cabeça às sensações e sentimentos a ele vinculados, se passando desapercebidos do que aconteceu, se mobilizando com ele afetos fortes ou fracos, leves ou pesados, oportunos ou inoportunos.

A questão é: ninguém percebe mais a exie

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