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Tempo e temperatura.

Aqueles instantes no sofá foram tamanhos que nem vi tempo onde só havia temperatura. Poderiam - deveriam - ter durado a eternidade. Cada segundo seria então toda uma estação, e o meu tempo se marcaria na sua temperatura. Outono dos seus braços, verão da sua boca, primavera dos seus olhos, e, quando chegou o inverno, você afastou-se, chegou o inverno quando você se afastou.
Procurei em vão ver tempo onde só havia temperatura, na sala fria demais porque seu calor era só seu, pensei estar delirando. O cheiro do seu calor foi se entranhando em minha pele e eu poderia ver o tempo parar onde sentia sua temperatura. Como uma criança abandonada, irritei o íntimo da minha alma e com ele derrubei todos seus livros. Baguncei o seu tapete, joguei para o alto suas almofadas e todo o tempo só o que havia era temperatura, inflamada e quente.
Eu estava ali, ao alcance do seu braço, para a hora em que você quisesse voltar. Te olhava me olhar e não sei bem o que via, a vista turva de desejo. Te olhava me olhar e seus olhos me invadiam, eu tentando proteger aquilo de mim que você ainda não sabia, e que tanto procurava. Te olhava me olhar, te olhava me olhar e a temperatura desse olhar me derretia, em pouco tempo líquido de mim seria. Líquido lânguida, estirei-me no seu sofá, sapatos sobre o estofado.
Você não me dizia o que fazer, só queria saber de mim, de mim que nem ao menos sei de mim que esconde de você o que queria te dizer, mas via o tempo passar sem temperatura. Você tudo me escondia, fugidio e medroso, escorregadio e eu a te avisar, meu tempo passava, como do inverno passa-se à primavera, como do calor ao frio, como a sua temperatura ia passando pelo meu pescoço abaixo.
Já na rua, deixando para trás o tempo da temperatura que bagunçou o seu lugar, senti sua mão a me segurar, e nunca mais quis sair dali. Embora assim, você me deixava ir, e eu, tola, ia. Porque ia eu se queria ficar, ficar todo o tempo aquecida na sua temperatura? Porque me deixava ir, por que me deixava ir? Queria ouvir de mim aquilo que te faria mover, mas eu esperava que movesse-se por si mesmo. Esperava que movesse-se por si mesmo e que com o tempo, o movimento geraria calor, e a altas temperaturas, nos fundíssemos sem nos confundir, ao nos co-fundir, líquido de mim e de você.
Mas fui embora, e a lembrança do seu sofá e daqueles instantes já vai longe, aliás, já ia no instante do tempo em que a temperatura cessou. Agora, apenas uma vaga lembrança de que não se deve procurar tempo onde só há temperatura.

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