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Liberdade compartilhada - 2.

Estar junto de alguém não tem a ver com amor, tem a ver com ética. Amar, pode-se a alguém, sem estar junto dessa pessoa. Ou estar-se junto sem amar. Pode-se ainda amar estando junto, mas não haver ética na relação (talvez não seja não haver ética, mas não haver acordo entre as éticas de cada um dos dois), e então esse estar junto torna-se uma obrigação insustentável, ou uma relação assombrada por pontos de escape e fuga.
O amor pode sucumbir à patologia, a ética não. Amor sem ética pode tornar-se possessivo, a autonomia de certos complexos pode se impor sobre a relação, tornando-a conflituosa, priorizando escolhas neurotizadas em detrimento do estar junto.
A ética é essencialmente relacional. Minha ética é ética para com o outro. É a ética que define meu comportamento e minhas escolhas face ao outro e não o amor. O amor aproxima, a ética mantém próximo.
Amor fala de projeção, que funde aquilo que é meu na imagem que faço do outro. Ética fala de respeito pela diferença que o outro é. O amor pode invadir o outro; a ética delimita onde eu acabo e o outro começa. Amor é uno, ética é dialógica. Amor é contingência, ética é escolha.
Não se trata de optar entre amor ou ética: a opção deve ser pelo amor ético.
Amor que respeita o outro enquanto alguém que não eu e que se relaciona comigo. Alguém que aceita receber os conteúdos projetivos do meu amor e que, numa resposta reciprocamente ética, respeita o meu eu enquanto outro que não ele, receptáculo de suas projeções.
Amor ético, que funde e separa, que aproxima e permite a sustentação da proximidade porque respeita as fronteiras de cada um dos eus envolvidos; estar junto sem perder-se no outro.
Para respeitar os limites do outro, é preciso reconhecer a si mesmo onde se acaba, ali onde não é mais eu, mas outro, fora da minha jurisdição.
Pode-se aprisionar no ou por amor. Só na ética é-se verdadeiramente livre.

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