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Amor - parte 4: Transitoriedade

Todo amor é transitório. Primeiramente, porque nada no mundo permanece, e o amor, como algo que é, não fugiria à regra. "Segundamente", em virtude de ser o amor o que é: amor; e assim o sendo, não poderia ser de outra forma senão transitório. Aquele que transita, que faz o trânsito entre lugares e coisas, de uma coisa para outra, em movimento. Hoje eu amo o preto, amanhã o branco; hoje amo em cima, amanhã em baixo; hoje amo, amanhã desamo.
Não me refiro à finitude: amor não acaba. Transitoriedade. Já amei uma infinidade tão grande de pessoas, a algumas delas, amei-as por alguns segundos, o tempo que durou o ônibus parado no sinal, eu a observá-las. E era amor, tenho certeza. Algumas pessoas são tão facilmente amáveis, que alguns segundos no trânsito basta para amá-las, vivê-las, esquecê-las. Como todo amor na sua transitoriedade. Se for eterno, não é amor, é outra coisa. Ou não é nada, a única coisa que permanece.
Se se ama alguém há muitos anos, por toda a vida, ou nos últimos dias, eu digo: não se ama todo esse tempo. Não se ama sua esposa há vinte anos: ama-se a ela novamente a cada dia. E garanto que há dias em que não ama. Há dias em que esse cadinho de amor que a estava amando ontem, ama o futebol; a secretária; o carteiro; um bom vinho; a paz da solidão. Mas logo ama-a novamente e nossa cabecinha humana nos prega o grande embuste de todos: a sensação de continuidade.
O amor é quântico, está aqui e ali ao mesmo tempo, ignora as regras clássicas fingindo nelas se enquadrar. A continuidade das coisas é uma feliz idéia da criação, que, na preguiça de fazer um 2.0, lançou mão desta artimanha para impedir que nossos cérebros demasiadamente humanos implodissem em meio à profusão de informações que nos chegam a todo instante, que não é instante, mas o momento único do existir. Pensando bem, até que somos bastante refinados, para transformar tudo isso num fio de Ariadne.
Me pergunto agora: por que caminhos nossa cultura transformou amor em sinônimo de prisão? Uns fogem do amor como se fosse a última saída para sobreviver; outros o caçam como se ao encontrá-lo, um porto seguro de onde nunca mais sairiam, o amor de Pequeno Príncipe e sua Rosa na redoma. Dizer a alguem: "eu te amo" é uma das maiores invasões que se pode fazer a alguém hoje. "Ela me ama; logo eu devo-lhe lealdade, fidelidade, devo-lhe meus dias, minhas noites, meus pensamentos, minha individualidade! É é justamente por isso que farei o exato oposto."
"Eu te amo" significa agora. Porque é aqui e agora que amo-te. Sem contratos assinados, firmas reconhecidas em cartório, comunhão de bens, até que a morte nos separe. "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", enquanto o mantiver cativo. Essa é a responsabilidade do amor: ética. Amo-te agora e sou teu cativo, e amar-te agora é bom, porque exige de você apenas que você exista.
Se você ainda ama algo que não está mais lá, ou que não compartilha com você a ética de se ter cativo, permita que seu amor atenda à sua natureza, antes que o mate: transitar pelos objetos dos mundos.
E nesse extamo momento,
Eu te amo.














































"A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim, a lágrima clara sobre a pele escura, a noite, a chuva que cai lá fora.
Solidão apavora, tudo demorando em ser tão ruim. Mas alguma coisa acontece no quando agora em mim: cantando eu mando a tristeza embora."

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