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Amor - parte 3: Dança.

Arte é uma modalidade de amor. É amor aquilo que é mobilizado dentro de nós quando fazemos ou assistimos arte. É um sentimento de completude, de beleza que nos toma no contato com a arte e que é bem próximo, ou mesmo, é o próprio indizível. É o sentir pré-verbal: e isso é amor.
O amor é pré-verbal, é da ordem do urobórico, daquilo que sentimos no corpo que sou eu antes mesmo de poder descrevê-lo ou descrever-me. E é no corpo que se faz a dança.
Dança é movimento. E mais do que nunca, essa é uma afirmativa verdadeira na dança contemporânea. A dança historicamente sempre estave ligada a outras categorias, teatro, ópera, música, mas a dança contemporânea é - me perdoem os escolados se me equivoco - a grande vociferação do dueto corpo-movimento. Nesta modalidade de dança, corpo e movimento são as grandes vedetes, mais que a história subjascente, mais que a música, mais que todo o resto, que são, claro, coadjuvantes fundamentais, mas que não têm o peso e o sentido da dupla corpo-movimento.
Mas eu gostaria que este meu dizer aqui tomasse caráter de crítica, de revista, embora meu knowhow seja apenas de espectadora.
Temos nomes muito representativos na dança contemporânea, nomes inclusive que são responsáveis por tornar a dança contemporânea acessível ao grande público, tamanha é sua presença na cena artística atual - que convenhamos, a dança artística não é culturalmente um hábito do brasileiro, quem dirá do carioca.
Mas a mim é impossível evitar a constatação: o grande elogio à dança contemporânea atual é mérito devido a Alex Neoral. Tendo assistido os trabalhos mais recentes de figuras eminentes como Débora Colker, Paula Águas, João Saldanha, Renato Vieira, entre outros bailarinos e coreógrafos, o trabalho de Alex destaca-se de forma contundente.
Seus trabalhos são impregnados de um bom gosto que vai da iluminação aos figurinos, passando, obviamente pela trilha sonora impecável. Suas coreografias são diálogos penetrantes com trocas sutis e com passagens tão suaves que nos embalam de um par a outro, de um diálogo a outro. O corpo de baile é integrado e harmonioso; seus bailarinos parecem emanar os movimentos de seus corpos como água de uma nascente, e sem invencionices nem malabarismos, transformam o corpo em instrumento, o movimento em idioma e o diálogo de seus corpos numa fala coerente e compreensível nessa mesma ordem de pré-verbal com que se sente o amor. Mérito de cada bailairino, os movimentos dialógicos passam de um corpo a outro numa continuidade macia e precisa; os movimentos estanques são bem utilizados, sem esteriotipias e com um poder criativo dificilemente encontrado nos dias de hoje.
Mas falava eu do amor. Amor que se sente no corpo, amor que se mobiliza na arte. A dança é, por natureza e por direito, a arte que mobiliza o amor. Os corpos que se tocam em movimento, em prazer, no que não pode ser dito, porque é anterior à capacidade de dizê-lo.
Quem dança - ou se alguém já dançou ever - reconhece aquilo de que estou falando.
Se a dança contemporânea é uma ode ao movimento, Alex usa suas "palavras" - Carol, Clarice, Márcio, Mônica, Marisa, Andrey - com a poética daquilo que sabe-se antes mesmo de saber-se.
Quis usar este exemplo para falar de amor, tenho falado muito daquilo que é sentimento mais em nós-corpo do que em nós-fala. E assistir a esses meninos me causa o estranhamento daquilo que não se fala, mas que se sente e é infalável. É amor, o acolhimento que a alma recebe ao viver esse tipo de experiência; logo, nada mais justo que retribuir com aquilo que posso: o dizer disso que me é possível.

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