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Amor - parte 2: Contato.

Quanto tempo pode uma pessoa ficar sem ser tocada?
Existem vário estudos em macacos, generalizados para crianças humanas, ou estudos em crianças mesmo, enfim, tem muita gente por aí que defende graves danos à estrutura da personalidade ocasionados pela falta de contato corporal nos primeiros anos de vida. Falta de carinho, falta de colo, falta de abraço. Falta do calor do corpo do outro.
Talvez alguém por aí não acredite, mas o não contato com o corpo do outro pode te tornar uma pessoa pior. O corpo humano tem uma temperatura específica, uma textura própria, uma densidade, cheiros, que edredon nenhum no mundo pode reproduzir, quem dirá substituir. Mas mais do que os fenótipos, o corpo - e aqui não me atrevo a dizer só do corpo humano - os corpos têm algo que nenhuma biologia foi capaz de explicar, embora não haja psicologia que possa discordar: os corpos têm sentimentos.
E por sentimentos aqui entenda-se não apenas aquilo de que você pode dizer, mas também, e principalmente, daquilo que não se pode dizer. O que se sente quando bem aconchegado nos braços-colo do ser amado é o indizível. Mas mais do que o que se sente, o corpo daquele que nos abriga em seus braços tem um sentimento próprio todo seu que nos é passado, pele a pele, diretamente para o corpo que somos, sem ao menos o sabermos. O corpo denuncia sentidos que muitas vezes nossa fala contraria, e nada melhor do que o toque para passar a saber de tudo o que não é dito.
E nesse diálogo escondido, nosso corpo funciona como lugar onde me reconheço: me reconheço porque você me toca e é seu toque que me dá a dimensão do que eu sou. Entendam isso metaforicamente e também literalmente. Isso é verídico principalmente para certas regiões do corpo. Por exemplo: quando foi a última vez em que você sentiu a sua orelha? Ah, sim, foi naquela festa, com aquele cara, que dava mordiscadinhas deliciosas na pontinha do seu lóbulo... Ou foi na farmácia, com aquela pistola de filme spielbergniano que se usa pra "injetar" novos brincos na sua cartilagem? Agora, responda rápido: ambas as situações te fazem lembrar da sua orelha, mas qual delas possui mais sentido? Qual delas cria um registro mnemônico no seu corpo capaz de envolver a totalidade do que você é?
Eu arriscaria dizer que funciona mais ou menos assim: quando furou-se sua orelha, você pensou: "ó, então eu tenho uma orelha!"; ao passo que, com o tal cara, da tal festa com as tais mordiscadinhas, você pensou: "nossa, eu nunca imaginei que ter uma orelha pudesse ser tão legal!!"
O toque do outro diz da utilidade do seu corpo que é você mesmo. Desenvolvendo: em primeiro lugar, o tipo de relação que o outro tem com o seu corpo fundamenta o tipo de relação que você tem com o seu corpo que fundamenta por fim sua identidade. Corpos que apanham tendem a entender-se como espaços de sofrimento, dor e de abuso. Corpos que são acariciados, vêem-se como espaços agentes de exercício de direitos: o direito de serem amados. E, o segundo ponto desta afirmativa, "seu corpo que é você mesmo", rompe com a proposta cartesiana para um agravamento da importância do pressuposto anterior: o corpo que apanha e se torna espaço de abuso não é o meu corpo; EU me torno um espaço de abuso. Eu não tenho um corpo, eu SOU corpo; o outro corpo que me toca não é o corpo de alguém, mas é esse alguém que toca em mim com o corpo que ele é.
Alguém (como eu) deve estar então pensando em sexo. Não em fazê-lo agora (porque não?) mas na vivência do sexo enquanto eu-corpo/tu-corpo segundo o que falamos acima. Difícil fica conceber o tal sexo sem compromisso como apregoa a pós-modernidade, porque mesmo o sexo embriagado com desconhecidos, mesmo o sexo por profissão, mesmo a tentativa de nenhum envolvimento, ainda assim esse sexo é um encontro de subjetividades: eu e o outro naquilo que somos corpo numa relação que fala de quem somos, de como somos e do que fazemos com o que somos, mesmo que muito brevemente. Qualquer que seja o sexo, é você quem está ali. Por mais que esteja pensando em pintar o teto de salmon, é você quem está ali. Quando estamos envolvidos no ato, é fácil perceber o quanto somos nós mesmos ali, mas quando não estamos tão envolvidos assim, tendemos a achar que ali não estamos, que é "só meu corpo que está ali". Não é não. Seu corpo é você, e é você que está ali com o outro corpo que também é.
Quanto tempo pode alguém ficar sem ser tocado, foi essa a pergunta com a qual iniciei este pensamento. E talvez a resposta esteja justamente nesse comportamento sexual de hoje em dia - essa é apenas uma das infinitas análises possíveis disso - porque ao fingir separar meu corpo de quem sou, os toques nunca serão suficientes, porque toco e sou tocada superficialmente, não permito que o toque aprofunde-se em quem sou, porque me escondo, fingindo que não sou o corpo que sou, mas que esse é apenas uma caixinha onde me caibo e que posso eculpí-la em salões e academias, criando o paradoxo de que, quanto mais modelo o envólucro, mais me distancio de me identificar com essa imagem, e me impeço de sentir o toque que não chega nunca a encostar na verdade do que sou.
De qualquer forma, ninguém pode ficar muito tempo ser ser tocado. Sabendo-se ou não corpo, se não me tocam, deixo de existir para mim mesma, porque não me reconheço mais corpo, que é espaço, que é tempo, que é existência. Faz falta também decifrar o sentir do outro nessa linguagem intraduzível que é o contato de dois corpos, seja num abraço entre amigos, num carinho de pai ou mãe, seja num ato sexual com alguém que se quer tocar.
O outro sente algo quando me toca e eu-corpo sinto o sentir do outro-corpo e isso me faz reconhecer-me. E vice-versa. E sucessivamente.
O toque é a primeira coisa que recebemos do mundo, nossa pele contém a primeira linguagem que aprendemos e da qual nunca iremos prescindir. Amar o outro em qualquer nível é tocar seu corpo sabendo que está tocando aquilo que o outro é mais autentica e genuinamente, aquilo que é em primeira instância, a sua maior verdade. E ser tocado assim, é existir plenamente.

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