Pular para o conteúdo principal

A perplexidade da dor.

Estive a ler sobre a dor por esses dias, dor, de um modo geral, dor física mesmo, com ou sem metáforas, e, qual não foi meu espanto ao deparar-me com estatísticas que asseguravam que "a dor afeta pelo menos 30 % dos indivíduos durante algum momento da sua vida e, em 10 a 40% deles, tem duração superior a um dia." Trinta por cento??? Pelo menos 30%?? Essa foi uma informação que, no mínimo, deveria fazer com que eu revisse certas convicções minhas. Sim, porque, eu estava convicta de que a dor afetasse TODOS os indivíduos em algum momento de suas vidas.
Como não sou dada a alterar minhas convicções a partir do discurso alheio com tanta facilidade, continuo acreditando que TODOS os indivíduos são afetados por alguma dor, pelo menos uma vez na vida. Qualquer dor. Nascer dói. E nada me convence do contrário: a primeira experiência do mundo concreto é dor. Infelizmente. Somos recebidos nesta realidade com a triste constatação: é, vai doer...
Mas, além dessa, seria possível conceber alguém que nunca, nunquinha mesmo, nunca tenha sentido, além da dor de nascer, uma dorzinha de estômago, porque comeu demais ou de menos, uma cólica, água no ouvido, pisão no pé, beliscão, topada, dar com o nariz na porta, gripe, picada de abelha, dormir por cima do próprio braço.... São tantas as possibilidades, e tudo isso dói. Se resolvermos entrar então no âmbito das dores psíquicas, emocionais, metafóricas, aí mesmo é que não escapa um. Impossível! Me recuso. Todos já doeram, doem ou doerão. Dor é o inexorável.
Hão de me chamar pessimista - será? - assim como a Nietzsche, Satre, Camus, Bukowsky, Augusto dos Anjos, embora nenhum de nós o sejamos. Apenas entendemos que o culto a Apolo não pode prescindir das Dionísias, como a máquina social muito nos pretende fazer acreditar, culminando fatidicamente em reações sombrias que fogem ao nosso controle de forma desmedida.
Mas, após esta pequena digressão, voltemos ao que interessa: dor. Todos os estudos e pesquisas e ciências de hoje e há algum tempo histórico insistem numa denominação diferenciada, "para esclarecer", em dores físicas e dores psíquicas. Assim, a dor é uma “experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências anteriores.”(IASP- International Association for the Study of Pain). Vamos tentar entender isso.
Se dizemos "esperiência sensitiva E emocional", estamos aqui afirmando uma indissociabilidade entre a minha experiência corpórea e minha experiência psíquica. "Cada indivíduo aprende a utilizar este termo através das suas experiências anteriores", ou seja, meu conceito de dor, que obviamente está embasado em experiências emocionais - e quando digo emocionais, me refiro ao fato de não serem regidas pela lógica racional, mas por uma expressão mais total do psíquico - me permitirá dizer que meia hora de uma agulha intermintente furando e refurando minha pele com um bocado de tinta, não se configura como dor. Enquanto para outros, isso pode parecer a descrição de uma verdadeira tortura chinesa. Então pergunto: esta dor, é sensorial ou emocional?
O que me intriga mais ainda no trecho acima é: "relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos". Ok, lesão real, todo mundo entendeu. Mas, e agora, lesão potencial dos tecidos... O que diabos? Afinal, decido-me por não ficar conjecturando o que quer que o autor do texto citado quereria dizer efetivamente com isso, mas sim, como sempre - e mais legal - vou ensaiar sobre minha fantasia do que eu acredito ser um sentido cabível ao termo lesão potencial dos tecidos.
Potencial tem a ver com aquilo que poderá ser. Mas não o é. Ainda. E talvez nunca. Mas poderia. Como se poderia experimentar a dor de algo em potencial? Sentir o corte, antes mesmo da faca rasgar a carne? Ou estaríamos falando do sentido clássico de histeria de conversão? Hipocondria?
Ou talvez, quem sabe, quem sabe, a lesão potencial seja aquela que surgiria a partir da dor, numa inversão da fórmula, quando a dor viesse antes numa metáfora? Assim, que a saudade dói no centro do peito, junto com a angústia; a raiva dói no fígado; a solidão dói no meio do estômago; a ansiedade dói nos pulmões; a preocupação dói na cabeça; o medo dói nas pernas; o cansaço dói nos ombros; e pra nenhum desses, não há raio X ou tomografia que encontre a lesão. A dor vem antes, a lesão é potencial, caso a dor continue a doer com muita insistência.
A nossa medicina dessa metade da laranja - ah, já estava com saudades das laranjas!!! - não gosta muito desta idéia. Até para os estados psíquicos, prefere a equação "antes lesão, depois dor" que se traduz posteriormente em comportamento, sentimento ou o que for. Mas não somos a medicina ocidental. E partindo de outros pressupostos, suponho que a lesão potencial é aquela que se realiza quando à dor que nos atinge não é dado o seu devido lugar: o de parte da existência, não de 30, 40 ou 50% de nós todos, mas de todos nós, sem exceção. E uma parte expressiva que deve ser levada a sério tanto na sua forma física, quanto psíquica.
Então, se você é daqueles que toma aspirina pra dor de cabeça e vitamina C para resfriado, e se você dói uma lesão potencial, vá buscar o sentido para sua dor, coloque-a no devido lugar, antes que a lesão vá de potencial para real e que sua dor tome uma parte maior da sua vida do que deveria tomar.
Porque dor é o inexorável da existência, e, pra cada mal um phármakon diferente.

(Para Dani, embora ela dificilmente vá ler isto aqui pq nem sabe que eu tenho um blog.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Shiva, Vishnu e Brahma, Nietzsche, Heidegger e Sartre.

A existência é perfeita. Nem mais nem menos. Não se deve questionar o que se lhe acontece, porque é a perfeição. A existência é perfeita e você está exatamente onde deveria estar nesse momento. O que lhe acontece é exatamente da forma como deveria. Todos os milhares de seres que atravessam seu caminho ao longo do dia, deveriam estar precisamente ali naquele momento, não antes, não depois, não em outro caminho, mas no seu, naquele instante único. A unicidade é a precisão da existência. Porque só existe isso agora. E o que existe é minuciosamente programado para vir a ser, nesse único instante do existir. O existir não é linear. É apenas um ponto,o ponto do instante. Não existe antes nem depois, apenas isso, o instante que há, é onde eu existo. Eu não fui nem serei. Tampouco sou. Eu estou sendo. O momento do devir. E eu devenho a cada instante que é um só. O que há é apenas o agora. O que foi e o que será não têm consistência. É vago, etéreo, onírico. O único real é o do momento presen...

Tudo o que tenho por um pouco de paz de espírito, John!

Eu queria apenas ser, sem sabê-lo. Sem saber o como, quando e o porque de ser como quando e porque. Ser sem ciência, no máximo, uma leve intuição de por onde ir. Eu queria dizer, sem pensá-lo. Sem saber o porque do que digo nem adivinhar o porque da resposta que recebo. A inconsciência da ignorância do substrato de tudo. A consciência de si não é a ciência do subjacente. Posso saber de mim mesma, sem entender-me, nem a ti. Sei que sou, e basta. Não me interessa o que move meus passos, interessa que ando. Queria andar sem me notar, e, caso batesse numa parede, a culpa seria dela por estar ali, e não minha. O que sei de mim, é minha responsabilidade. Gostaria de lavar as minhas mãos. E que o resultado das coisas fosse apenas uma prerrogativa do suprapessoal, sem vínculo algum com minhas escolhas. E que as palavras fluíssem de meus dedos incessantemente. Penso, logo sou e sofro. Sofro a reflexão de mim mesma sobre o que sou. Se flutuasse na plenitude paradisíaca do não saber, o mundo ...

Ao meu amor.

Em respeito ao meu amor, jamais deixarei de amá-lo - ou ao menos por hora. Porque meu amor não é descartável. Não é algo que mude ou se jogue fora, simplesmente junto com o objeto que se vai. Meu amor é muita coisa. É força, é profundidade, é aceleração. Ele se dá e preenche. E não é assim, porque o objeto se afasta, que, como poeira, vai ao vento deixar de ser amor. Ou espalhar-se. Ou mesmo polvilhar quintal alheio. Não, devo muito ao meu amor para achar que posso desvencilhar-me dele assim, súbito, de uma vez por todas. Ele é maior do que eu. Se se ama algo mesmo, não é porque este algo não está ao alcance que qualquer outra coisa pode substituí-lo... Lutar contra isso me parece inútil. E se outra coisa pudesse simplesmente entrar no lugar, então talvez não fosse amor. Pelo menos não o meu amor. Esse que é tamanho. A maioria já deve ter ouvido falar que o poetinha pensava que nada melhor para esquecer um grande amor do que um outro, novo grande amor. Talvez não seja bem isso. Talve...