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É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena final.

Tela em branco. Tela em branco. Tela em branco.

Parece que está vazia, que já disse tudo, que já se expôs demais. Tem um sentimento gozado de vergonha, ela que escreveu despudoradamente, e agora se defronta com sua intimidade mais velada ali, palavra por palavra.

Tem a sensação de que não existe. Começa a deixar de existir. Após tanto tempo sem se reconhecer no olhar do outro, a imagem de si mesma esvai-se na solidão das madrugadas. Correr riscos é agora a única coisa que faz sentido. É o silêncio da solidão das madrugadas que a mantêm acordada. A luz do dia a faz dormir e sonhar.

Começa a deixar de existir. O que seria a existência senão a afirmação de outrem de que ela realmente existe? A imagem de si mesma esvai-se e quem é que pode afirmar que ela é, quando não há ninguém olhando? Não há ninguém olhando e ela não sabe mais ao certo se está ali. Se é ali. E se não for? E se deixar de existir.

Correr riscos é agora a única coisa que faz sentido. Na folha tela em branco corre-se um risco de grafite cinza preto azul, mas ninguém vê. E uma borracha não testemunha vai desfazendo seu traço, e ela vai deixando de existir. A sua transbordância, que não se cabia em si mesma, esvaiu-se. Ela precisava dividir, ela precisava dividir e assim o fez. Na tela folha branca correu o risco azul cinza preto e escreveu despudoradamente sua intimidade mais velada ali. Bem ali na frente do outro que não a vê. Que não testemunha seu existir.

E agora, o vazio. Para onde foi tudo aquilo que era ela que não cabia nela em si mesma? Quem leu-vou seu existir o que tinha dentro de si? Ontem, transbordava na solidão. Hoje, vazia na madrugada. Amanhã, não existir até que devolvam o olhar em sua direção. O que resta agora é imagem. Mas a imagem é para aquele que a vê! E existência da imagem não é em si mesma, mas apenas quando o olhar a apreende, devolvendo-lhe conteúdo.

Ela é imagem agora então. Ela é só imagem. Mas quem a vê? Andará na madrugada pela casa escura olhando-se de espelho em espelho. Existo. Sumi. Existo. Sumi. Existo. Ela já dividiu o que não cabia em si mesma e agora aguarda que o olhar devolva-lhe o conteúdo do seu existir. Sumi. Existo. Sumi. Existo. Sumi.

Ela é imagem, e agora o vazio. Tela Branca. Cena Final.

Fade out.

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