Ou as coisas ardem ou não me meto nelas.
Foi uma frase que surgiu de meus dedos enquanto digitava os argumentos de uma discussão interminável (como todas) via msn às 4h30 da manhã. Esse tem sido meu horário de maior atividade, desde que comecei a trocar os dias pelas noites. Atividade de um modo geral: emocional, de raciocínio, intelecutal, física. A madrugada é um momento do dia caracterizado pela intensidade. Parece que o véu da noite exerce um peso sobre as almas, obrigando-as a viverem aquelas horas de forma intensa e inteira, entregando-se profundamente às experiências noturnas.
A noite alta é esmagadora e plenificante. A temperatura da noite, o silêncio que permite ouvir outros sons - mesmo que deformado nas grandes cidades - suas cores e cheiros, são infinitamente estimulantes, sugerem profundidade, sugerem contato com tudo o que é o outro lado. Com tudo aquilo que não faz parte do dia, da luz, da movimentação agitada do cotidiano.
Assim sendo, a alta madrugada torna-se o melhor horário para se entrar em contato com aquilo que é você, mas que você não costuma considerar com muita demora. Na alta madrugada, não há testemunhas daquilo que você esconde, permitindo que tudo isso venha à tona - claro, se você tiver condições de suportar (não me vá dissociar às 5 da manhã e dizer que foi idéia minha!). Aquela parte de você que não ousa contar nem para seu clérigo de estimação; aquilo que te faz tremer só de imaginar ter que dizer na frente do seu analista; tudo o que você combate ferozmente que apareça à luz do dia, no seu trabalho/casamento/estudo/happy hour, tudo isso está na alta madrugada.
Mas o que vai te deixar feliz em saber é que, por incrível que pareça, tem muita coisa boa nesse balaio. A solidão da noite é potencialmente destruiva e construtiva. Como a dança de Shiva. Todas as fraquezas que se impõem gritantemente à sua vista, saltitando "estamos aqui!!!", são processos de desconstrução da atitude unilateral que constitui a nossa personalidade - atitude necessária para a vida prática, mas que hiperbolizada, pode causar um grande desequilíbrio da nossa alma. Por isso, desconstruir estas atitudes, confrontando-as com suas fraquezas opostas ululantes na madrugada, é processo construtor de sentido nas nossas vidas, ou seja: é coisa boa.
Mas o mais intrigante é o caráter peculiarmente transitório das experiências da alta madrugada. Quem já "chorou seus olhos fora" (tradução livre minha para "cry his eyes out") uma noite inteira, sentindo um aperto na altura do plexo solar, como se o externo fosse se esfarelar em poeirinha cósmica e esticando a garganta aos céus, abrindo bem a boca para pôr para fora todo o mal doentio do corpo e da alma ( The green mile, assistam), também já acordou no dia seguinte (depois de talvez ter dormido sobre seus próprios escombros) com os olhos inchados, mas com uma sensação de não saber exatamente porque, por que desses olhos tão inchados agora? Me sinto tão leve, tão cotidiana, tão pronta para mais um dia absolutamente igual a qualquer outro, por que esses olhos tão inchados agora? Ah sim, foi o esmagamento da madugrada anterior, agora me lembro. Mas, como foi sentir aquilo mesmo? Já não sei mais.
O ego, centro da sua personalidade consciente, aquele que você reconhece comum e facilmente com sendo você, não suportaria muitas horas, dias seguidos, semanas a fio mergulhado nesta sensação de solidão e esfarelamento. Com certeza, se você tem algum problema na vida que demora-se em resolver-se, se há algo que te preocupa incessantemente, se se sente num beco sem saída, você não vai esquecer disso durante o dia e só lembrá-lo à noite, não é isso. Você passará o dia preocupado com suas questões, mas essa entrega intensa a um sofrimento despedaçador só pode ser temporária: de outra forma, estariamos frente a um quadro patológico que frequentemente termina com o suicídio.
Mas independente de se ter ou não um problema que nos tome o pensamento todo o dia, ou que se esteja num momento de maior sofrimento na vida de modo geral ou não, falávamos aqui era da alta madrugada e do seu poder de mobilizar aquilo com o que não lidamos em base diária, aquilo para o que não temos tempo, o que não queremos saber, ou mesmo não sabíamos que estava lá e que era tão bom. Sim, tão bom: ah, então eu sou assim e posso conviver comigo mesma sabendo que assim eu sou! Muito bom.
Ou as coisas ardem, ou não me meto nelas: essa é uma das muitas coisas que descobri sobre mim mesma nas muitas madrugadas solitárias que experimentei desde a infância, e que, apesar de muitas vezes sair pela culatra, é algo que reconheço infinitamente como sendo eu mesma, não importa o resultado. Permitindo que o estranho de si mesmo insurja-se, reinvindicando seu lugar no espaço de quem se é, é que o estrangeiro transforma-se em identidade; "a capacidade de diálogo interior é um dos critérios básicos da objetividade" (JUNG, C.G., A Natureza da Psique, p.187).
É para isso que existe a madrugada, para lembrar-nos de que existe riqueza do outro lado, e de que aquilo que arde, cura.
Foi uma frase que surgiu de meus dedos enquanto digitava os argumentos de uma discussão interminável (como todas) via msn às 4h30 da manhã. Esse tem sido meu horário de maior atividade, desde que comecei a trocar os dias pelas noites. Atividade de um modo geral: emocional, de raciocínio, intelecutal, física. A madrugada é um momento do dia caracterizado pela intensidade. Parece que o véu da noite exerce um peso sobre as almas, obrigando-as a viverem aquelas horas de forma intensa e inteira, entregando-se profundamente às experiências noturnas.
A noite alta é esmagadora e plenificante. A temperatura da noite, o silêncio que permite ouvir outros sons - mesmo que deformado nas grandes cidades - suas cores e cheiros, são infinitamente estimulantes, sugerem profundidade, sugerem contato com tudo o que é o outro lado. Com tudo aquilo que não faz parte do dia, da luz, da movimentação agitada do cotidiano.
Assim sendo, a alta madrugada torna-se o melhor horário para se entrar em contato com aquilo que é você, mas que você não costuma considerar com muita demora. Na alta madrugada, não há testemunhas daquilo que você esconde, permitindo que tudo isso venha à tona - claro, se você tiver condições de suportar (não me vá dissociar às 5 da manhã e dizer que foi idéia minha!). Aquela parte de você que não ousa contar nem para seu clérigo de estimação; aquilo que te faz tremer só de imaginar ter que dizer na frente do seu analista; tudo o que você combate ferozmente que apareça à luz do dia, no seu trabalho/casamento/estudo/happy hour, tudo isso está na alta madrugada.
Mas o que vai te deixar feliz em saber é que, por incrível que pareça, tem muita coisa boa nesse balaio. A solidão da noite é potencialmente destruiva e construtiva. Como a dança de Shiva. Todas as fraquezas que se impõem gritantemente à sua vista, saltitando "estamos aqui!!!", são processos de desconstrução da atitude unilateral que constitui a nossa personalidade - atitude necessária para a vida prática, mas que hiperbolizada, pode causar um grande desequilíbrio da nossa alma. Por isso, desconstruir estas atitudes, confrontando-as com suas fraquezas opostas ululantes na madrugada, é processo construtor de sentido nas nossas vidas, ou seja: é coisa boa.
Mas o mais intrigante é o caráter peculiarmente transitório das experiências da alta madrugada. Quem já "chorou seus olhos fora" (tradução livre minha para "cry his eyes out") uma noite inteira, sentindo um aperto na altura do plexo solar, como se o externo fosse se esfarelar em poeirinha cósmica e esticando a garganta aos céus, abrindo bem a boca para pôr para fora todo o mal doentio do corpo e da alma ( The green mile, assistam), também já acordou no dia seguinte (depois de talvez ter dormido sobre seus próprios escombros) com os olhos inchados, mas com uma sensação de não saber exatamente porque, por que desses olhos tão inchados agora? Me sinto tão leve, tão cotidiana, tão pronta para mais um dia absolutamente igual a qualquer outro, por que esses olhos tão inchados agora? Ah sim, foi o esmagamento da madugrada anterior, agora me lembro. Mas, como foi sentir aquilo mesmo? Já não sei mais.
O ego, centro da sua personalidade consciente, aquele que você reconhece comum e facilmente com sendo você, não suportaria muitas horas, dias seguidos, semanas a fio mergulhado nesta sensação de solidão e esfarelamento. Com certeza, se você tem algum problema na vida que demora-se em resolver-se, se há algo que te preocupa incessantemente, se se sente num beco sem saída, você não vai esquecer disso durante o dia e só lembrá-lo à noite, não é isso. Você passará o dia preocupado com suas questões, mas essa entrega intensa a um sofrimento despedaçador só pode ser temporária: de outra forma, estariamos frente a um quadro patológico que frequentemente termina com o suicídio.
Mas independente de se ter ou não um problema que nos tome o pensamento todo o dia, ou que se esteja num momento de maior sofrimento na vida de modo geral ou não, falávamos aqui era da alta madrugada e do seu poder de mobilizar aquilo com o que não lidamos em base diária, aquilo para o que não temos tempo, o que não queremos saber, ou mesmo não sabíamos que estava lá e que era tão bom. Sim, tão bom: ah, então eu sou assim e posso conviver comigo mesma sabendo que assim eu sou! Muito bom.
Ou as coisas ardem, ou não me meto nelas: essa é uma das muitas coisas que descobri sobre mim mesma nas muitas madrugadas solitárias que experimentei desde a infância, e que, apesar de muitas vezes sair pela culatra, é algo que reconheço infinitamente como sendo eu mesma, não importa o resultado. Permitindo que o estranho de si mesmo insurja-se, reinvindicando seu lugar no espaço de quem se é, é que o estrangeiro transforma-se em identidade; "a capacidade de diálogo interior é um dos critérios básicos da objetividade" (JUNG, C.G., A Natureza da Psique, p.187).
É para isso que existe a madrugada, para lembrar-nos de que existe riqueza do outro lado, e de que aquilo que arde, cura.
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Estranhe.