Não é estranha a força que tem a nossa necessidade de dividir nossa alma com o outro? Sem isso, nos sentimos incompletos, despersonalizados, eu diria. Aí está o fundamento do amor: dividir aquela imensidão que somos, com outro que nos ajude a carregar toda a nossa existência.
***
Esse é meu tema, meu tema é a existência.
Toda essa vida em festa que transborda nos dias de carnaval só me faz pensar em existência, na solidez da cidade, no estar ali, na antropologia do que vejo.
Já de início, a estrutura da cidade - não de alguma cidade especificamente, mas o conceito de cidade, que é uma das coisas mais bem boladas da humanidade - nos convida incessantemente a estranhá-la e naturalizá-la, numa roda em eterno movimento de estrangeirismo e pertença. O estar ali pode nos tomar momentaneamente numa onda de contaminação psíquica, e por algum tempo nos sentiremos parte da coletividade. Mas logo o chão da cidade, um grupo de foliões e sua alegria tresloucada, as fantasias, um prédio antigo, logo algo apresentar-se-à a nós com estranhamento, como algo que, antes de ser simplesmente o que é, é um fenômeno extremamente complexo, contextualizado, com intrincadas variáveis históricas, geográficas, antropológicas, arquetípicas, psicológicas, sociais, etc, etc, etc. (E você achando que estava apenas pulando carnaval...)
O estranhamento de uma cidade é tão denso que penso podê-lo cortar com uma faca...
Deparei-me então com Clarice Lispector:
"A Perfeição
O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição."
A verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Olhar para a cidade e perceber a exatidão da existência de tudo. Se somos simplesmente tomados pelo burburinho de todos os dias, indo e vindo, como havemos de enxergar a perfeição (ou, sobre como as coisas são - porque são exatamente o que devem ser)? Somente em suspensão podemos olhar-receber o sentido secreto das coisas. Suspenda esse modus vivendi de olhar e não ver. Suspenda achar que é natural. Suspenda seu modus operandi diário. Não, nada é óbvio, não é lógico, ninguém pensa exatamente como você, e sim, vc é um elemento microscópico em meio a imensidão da realidade.
***
E assim, é preciso dividir nossa existência. É preciso ocupar nossa vida com o dia-a-dia para que o estrangeirismo não nos enlouqueça.
Infelizmente, para alguns, ele nos segue, estejamos onde estivermos, a sensação de estranhar é o Sancho Pança da nossa loucura.
Mas, que assim o seja: antes o enlouquecimento da suspensão que a dissolução do desapercebimento.
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Esse é meu tema, meu tema é a existência.
Toda essa vida em festa que transborda nos dias de carnaval só me faz pensar em existência, na solidez da cidade, no estar ali, na antropologia do que vejo.
Já de início, a estrutura da cidade - não de alguma cidade especificamente, mas o conceito de cidade, que é uma das coisas mais bem boladas da humanidade - nos convida incessantemente a estranhá-la e naturalizá-la, numa roda em eterno movimento de estrangeirismo e pertença. O estar ali pode nos tomar momentaneamente numa onda de contaminação psíquica, e por algum tempo nos sentiremos parte da coletividade. Mas logo o chão da cidade, um grupo de foliões e sua alegria tresloucada, as fantasias, um prédio antigo, logo algo apresentar-se-à a nós com estranhamento, como algo que, antes de ser simplesmente o que é, é um fenômeno extremamente complexo, contextualizado, com intrincadas variáveis históricas, geográficas, antropológicas, arquetípicas, psicológicas, sociais, etc, etc, etc. (E você achando que estava apenas pulando carnaval...)
O estranhamento de uma cidade é tão denso que penso podê-lo cortar com uma faca...
Deparei-me então com Clarice Lispector:
"A Perfeição
O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição."
A verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Olhar para a cidade e perceber a exatidão da existência de tudo. Se somos simplesmente tomados pelo burburinho de todos os dias, indo e vindo, como havemos de enxergar a perfeição (ou, sobre como as coisas são - porque são exatamente o que devem ser)? Somente em suspensão podemos olhar-receber o sentido secreto das coisas. Suspenda esse modus vivendi de olhar e não ver. Suspenda achar que é natural. Suspenda seu modus operandi diário. Não, nada é óbvio, não é lógico, ninguém pensa exatamente como você, e sim, vc é um elemento microscópico em meio a imensidão da realidade.
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E assim, é preciso dividir nossa existência. É preciso ocupar nossa vida com o dia-a-dia para que o estrangeirismo não nos enlouqueça.
Infelizmente, para alguns, ele nos segue, estejamos onde estivermos, a sensação de estranhar é o Sancho Pança da nossa loucura.
Mas, que assim o seja: antes o enlouquecimento da suspensão que a dissolução do desapercebimento.
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Estranhe.