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Estrangeirismo no corpo.

Imagine-se um feto. Quieto. Imerso. Confortável. Aparentemente seguro. Literal e metaforicamente boiando.

Agora imagine que, sem menos esperar, uma forte pressão começa a te mover para baixo, mais pressão, mais pressão. Dor. Do conforto da imersão para o esforço de respirar. Do líquido ameno para pressão, dor, temperatura. Da escuridão para a luz. Do silêncio sussurante para o som do choro. Desespero. O que é isso?! O mínimo que você pode fazer neste momento é estranhar.

Eu acredito que é este o momento no qual o estranhamento se inscreve no corpo - porque tudo antes de mais nada se inscreve no corpo. Agora, você é um estrangeiro, acabado de chegar. Antes você pertencia a um corpo que agora não te pertence mais, e passar-se-ão alguns meses até que você desconfie que você é diferente. Um estranho, alheio, um estrangeiro. Existe então um outro. Outro este que não sou eu, corpo outro que não o meu. E ainda: meu corpo estranha o mundo que não sou eu. E o que sou eu também. Fome, dor, calor, frio, luz, barulhos mis, o que é tudo isso que não está em mim, estando em mim?

Muitas vezes o corpo estranha o próprio corpo: fome, frio, calor, dor e cansaço, como se fossem corpos estranhos invadindo a corporeidade na qual habitamos. Estranhamos também o corpo do outro. Observar um corpo que não o seu provoca invariavelmente sensações de estranhamento, de curiosidade, de epistemofilia. Querer conhecer aquele corpo estranho que é, a um só tempo, tão igual e tão diferente do meu.

É assim que o estrangeirismo é uma experiência universal da humanidade, porque se increve na construção da identidade pelo corpo. Talvez a melhor definição que já tenha se me apresentado sobre o estrangeirismo no corpo seja a náusea sartreana - eu talvez me arriscasse até a elegê-lo como o patrono do estrangeirismo existencial. Sartre foi felicíssimo ao sentar-se na praça e sentir no centro de seu corpo a viscosidade de uma raiz. Náusea é realmente uma ótima definição.

A náusea sartreana é a sensação do estrangerismo da realidade. Pergunta-se: o que é real? e a não-resposta sente-se no próprio corpo. Mas nem só de estranhamento vive o corpo. O corpo também vive o sentimento de identidade, de pertença. Experimente ir ao show da sua banda favorita, com quarenta mil pessoas assistindo; ou ir a um bloco de carnaval no Rio; ou abraçar uma árvore, uma vaca. Pertença. Sente-se-a bem no meio do peito. E, ao contrário de na náusea, aqui a realidade é bastante clara. Onírica, mas clara. Sim, clara sim, porque, ao identificar-se você percebe-se como real. É como ter um espelho de São Tomé: eu me vejo, logo creio que existo. E sim, onírica sim, porque a sensação de total pertencimento no corpo remete àquela situação paradisíaca que descrevíamos no início do texto, e que nunca mais será revivida integralemente como era. O total pertencimento não é real, embora a sensação de realidade seja mais forte. O estranhamento nauseabundo é real, embora justamente descontrutor da realidade que se propõe.

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