Pular para o conteúdo principal

Estrangeirismo

Estrangeirismo. Extranjero. Étranger. Étrange. Strange. Stranger. Estranho.
Platão, pai da filosofia como nós a conhecemos desta metade da laranja, vê no estranhamento a origem da filosofia. O Homem começa a filosofar porque sente este estranho estranhamento do mundo. Eros é quem filosofa, esse daimon do intermédio que está entre a sabedoria e a falta de recursos. Eros é impulsionamento, e se não lhe houvesse a falta, não lhe haveria o movimento.
Por outro lado, temos a já enxovalhada frase que afirma que "o Homem é um ser gregário". Vivemos no outro. Nos constituímos no jogo de identificação e diferenciação com o outro. No olhar do outro. No toque.
É preciso estranhar. Mas é preciso pertencer também. A solidão é um tema arquetípico dos mais densos, e pertence ao mundo do estranhamento, da não pertença, do estrangeirismo em todo lugar. Quantas pessoas devem sentir-se assim em todo mundo, estrangeiras em qualquer lugar? "Eu não sou daqui, marinheiro só", deve chamar-se a nova síndrome. Se é que é síndrome. E ainda mais: se é que é nova. Don't think so...
A mim não interessa classificar, enquadrar, medicar, remediar, solucionar, ou o que quer que se possa fazer com isso. A mim interessa a existência. A vivência de se estar sozinho na multidão. De ser um ilustre desconhecido, de estranhar cada momento, cada lugar, de ser alienígena, de não pertencer. Ponham-se todos a filosofar agora então, todos aqueles que se sentem tão fora, tão ex-cêntricos, ponham-se a filosofar!!!! Seremos muitos? Ou não encheríamos um caderno universitário?
Um exército de roupas pretas e expressão blasè, ou meia dúzia de gatos pingados e escaldados, estupefatos diante do resto do mundo? Quantas Eleanor Rigby e quantos Father Mckenzie hão de haver por aí? Se suas histórias tivessem sido aprofundadas, certamente descobriríamos o motivo de tanta solidão: o estrangeirismo existencial - sim, sou dada a neologismos e a cunhar novas expressões.
Estranhamento é o meu tema. E o maravilhamento que vem após. Apenas o estranhamento nos permite perceber o mundo na dimensão do maravilhoso, do genial, do criativo. Fora disso, tudo é comum, normal, corriqueiro. Sem sal. Mas tem seu preço. Perceber-se fora de contexto, alheado, deslocado, esse é o preço. O quanto de deslocamento pode uma pessoa suportar? Em uma hora, em um dia ou por toda a vida? Quanto tempo pode uma pessoa viver tendo a si mesma por referencial? Fazer suas próprias escolhas, eis o desafio, sempre.

E será isso então o filosofar? Criar para si mesmo uma filosofia própria que o retire da similitude, que lhe forneça sua própria cosmovisão, e que diga: "eis o mundo, é assim que se me apresenta, e é a mim, sozinho, que comunica esta realidade peculiar, que não é de mais ninguém, senão minha!"

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Shiva, Vishnu e Brahma, Nietzsche, Heidegger e Sartre.

A existência é perfeita. Nem mais nem menos. Não se deve questionar o que se lhe acontece, porque é a perfeição. A existência é perfeita e você está exatamente onde deveria estar nesse momento. O que lhe acontece é exatamente da forma como deveria. Todos os milhares de seres que atravessam seu caminho ao longo do dia, deveriam estar precisamente ali naquele momento, não antes, não depois, não em outro caminho, mas no seu, naquele instante único. A unicidade é a precisão da existência. Porque só existe isso agora. E o que existe é minuciosamente programado para vir a ser, nesse único instante do existir. O existir não é linear. É apenas um ponto,o ponto do instante. Não existe antes nem depois, apenas isso, o instante que há, é onde eu existo. Eu não fui nem serei. Tampouco sou. Eu estou sendo. O momento do devir. E eu devenho a cada instante que é um só. O que há é apenas o agora. O que foi e o que será não têm consistência. É vago, etéreo, onírico. O único real é o do momento presen...

Eu prefiro a madrugada.

Eu prefiro a madrugada. O silêncio. O distanciamento. Eu prefiro a madrugada, quando a maior parte não está aqui. Quando o tempo parece congelar. Quando só eu existo. Eu prefiro a madrugada, quando os pensamentos soam mais alto. Eu prefiro a madrugada, quando eu brilho no escuro. Eu prefiro a madrugada, onde todos os gatos são pardos. Onde eu posso me ouvir melhor. Eu prefiro a madrugada, porque não se precisa mentir nem inventar. Prefiro a madrugada porque é mais sincera. Prefiro as madrugadas insones, onde se sonha mais alto. Prefiro as madrugadas sóbrias, quando se vê mais ao longe. Eu prefiro a madrugada. Que é mais lenta. Que não nos atropela. Eu prefiro as madrugadas e seus ritmos sem pressa. O ritmo do agora. Prefiro lembrar o que me disse numa madrugada. Prefiro as madrugadas solitárias. E eu prefiro a madrugada com você aqui.

É necessário dividir porque não se cabe em si mesma. Cena 1

Toda casa está apagada; há uma panela besuntada de azeite sobre o fogo alto da primeira boca direita do fogão. O filme está pausado. Toda a casa está apagada. A luz da cozinha lança penumbra sobre a sala e o banheiro. Ela já não cabe em si mesma e não sabe ao certo o que fazer com isso. Sai dois passos além da porta da cozinha, e, segurando o saco com seus últimos milhos, gira noventa graus para se deparar com a sala. Toda a casa está apagada. O que é isso que ela vê? A panela superaquecida fumega sobre a primeira boca direita do fogão, e ela não entende o que vê. Não não entende de um estado confusional, mas de uma certa perplexidade com a realidade. É isso, ela está perplexa com o que parece ser real. Na sala penumbrada os tons de vermelho sobressaem e ela olha vagarosamente da direita para a esquerda, como se quisesse ver, enquanto o filme continua em pausa e a panela fumega prevendo um incêndio que não acontecerá. Ela retoma o curso do fazer. Os milhos caem fazendo estardalhaço sob...